Chega a amiga sem o sorriso que lhe é peculiar. Recebo-a no parlatório do convento com o pressentimento de que algo lhe esmaga o coração. Então, desabafa. Fala do genocídio (mais de 630 mil mortos) promovido pelo governo federal ao minimizar a pandemia e negar a ciência; das invasões de terras indígenas; do feminicídio alarmante; dos múltiplos casos de racismo; dos sucessivos assassinatos de crianças, no Rio, por supostas “balas perdidas”. E antes de se calar, conclui: “Não suporto o silêncio de Deus”.

Uma longa pausa se abre entre nós. Porque não me julgo portador de elixires capazes de consolar os aflitos. Também carrego minhas angústias e tantas interrogações que me oprimem o coração. O silêncio de Deus também me inquieta. Não creio em um deus “pronto socorro” que venha em resposta às minhas súplicas. Nem mesmo sei quem é Deus, digo a ela, por mais que os catecismos e as teologias se esforcem em defini-lo. Pura bravata!

Admito que Deus extrapola todos os nossos conceitos e nossas palavras, ideias e fantasias. Não cabe na mente nem na alma dos humanos. É radicalmente o Outro! O Inominável, como o considera o centésimo nome da divindade na lista muçulmana.

Mesmo na Bíblia – com raras exceções, como no batismo de Jesus (Marcos 1,11) -, Deus se cala. Faz-se presente disfarçado de nuvem, de brisa suave, de sopro, de anjo etc. É o “Deus absconditus” (oculto) de Pascal. Fez silêncio inclusive na agonia do Filho pregado na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, clamou Jesus ao ecoar o Salmo 22 (Marcos 15,34). Aquele que Jesus tratava com tanta intimidade, a ponto de chamá-lo Abba – “meu pai querido”, em aramaico – agora estava tão distante que foi invocado pelo nome genérico.

Deus também fez silêncio nos campos de concentração nazistas. Até o papa Bento XVI, ao visitar Auschwitz, em abril de 2010, exclamou: “Por que, Senhor, permaneceste em silêncio? Como pudeste tolerar isto? Onde estavas nesses dias?” Da mesma forma, o salmista clamou: “Meus Deus, eu grito de dia e não me respondes!” (Salmo 22,2). E Javé adverte no livro dos Provérbios: “Vocês me chamarão, mas não responderei; procurarão por mim, e não me encontrarão.” (1,28).

Deus é definitivamente um ser insondável, enigmático. É isso, na opinião de João da Cruz, que nos permite crer ou não crer. “Onde tu te escondes?”, indaga o místico espanhol, ao fazer eco ao profeta Isaías: “Tu és um Deus que se esconde” (45,15).

Minha amiga diz que está em crise de fé. Como os amigos de Jó. Recordo o conselho de Alfred de Vigny: “Nunca fale e nunca escreva sobre Deus. Restitua-lhe o silêncio com o silêncio”.

Esse silêncio significa a morte de Deus, como alertou Nietzsche? Óbvio que não. A religiosidade está em plena ascensão no mundo. Nos EUA é politicamente incorreto se declarar ateu… Figuras como o papa Francisco e o Dalai Lama se destacam como as mais respeitáveis.

Mas convém assinalar que Deus também é evocado pelos terroristas, pelos autocratas, como Bolsonaro, e seu nome é amplamente tomado em vão e utilizado para justificar as mais terríveis atrocidades.

“Graças a Deus”, roga uma família que, por pouco, não foi esmagada pela grande pedra que se desprendeu no canyon de Capitólio (MG). E o que dizer aos familiares das vítimas fatais? Dizer que não mereceram a bênção de serem agraciados pela mão salvadora de Deus?

Digo à minha amiga que prezo com profundo respeito o silêncio de Deus. De certa forma, invejo-o. Nesse mundo tão ruidoso, de zoadas auditivas e virtuais, guardar silêncio é uma atitude de profunda sabedoria. De saúde psíquica. Não vale a pena falar se minhas palavras não forem melhores que o meu silêncio.

Temos medo do silêncio. Deus não, o que comprova a sua sapiência. Temos dificuldades frente a tudo que requer silêncio, como dormir, orar, meditar, ocupar-se com um livro… O silêncio nos atordoa. E tememos o mais definitivo dos silêncios – a morte.

Digo à minha amiga que não creio em Deus, creio em Jesus. E, por tabela, no Deus de Jesus. Mas não sei quem ele é e nem isso me preocupa. Apenas sei que, segundo Jesus, ele pode ser encontrado em todo e qualquer gesto de amor. A fé é um salto no vazio. Creio sem saber. O foco de minha fé não é Deus, é Jesus. E mais do que ter fé em Jesus, quero ter a fé de Jesus. Como escrevi no poema Domingo no circo: “Domingo redondo aberto picadeiro ∕ Ensolarado por tão forte ardor ∕ Me refunde, queima, alucina: ∕ Olhos vendados, sem rede sobre o chão, ∕ Atiro-me do trapézio em teu amor.”

Após nossa conversa, minha amiga parecia menos angustiada. Fez-se prolongado e leve silêncio entre nós. Até que ela se levantou, deu-me um abraço apertado e partiu em silêncio.

 

Frei Betto
Frade dominicano, jornalista graduado e escritor brasileiro. É adepto da Teologia da Libertação, militante de movimentos pastorais e sociais. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.