Parte de minha juventude floresceu nesta pequena praia de Niterói. Em tupi-guarani, Itacoatiara significa pedra riscada. Nem ferida, nem magoada. Riscada, apenas. Sigo o mesmo destino das pedras.

Herdei um azul feroz e contundente: no céu onde se esconde o Sagitário; no além do mar oceano, e com saudades de África. É tanto azul que já não sei o que faço. Distribui-lo entre Rafael Sanzio, Raul Brandão e a mesquita de Isfahan.

Repousam no jardim, onde me ponho a escrever, os ossos de Carina, minha saudosa pastora alemã, e uma funda geologia da memória. Guardada a sete chaves, talvez impronunciável, com antigas falhas sísmicas.

Poderia invocar mil vezes outras potências do azul, o mesmo azul que me deixa em estado de sítio e põe o mundo entre parênteses, quando me deito, como substância pensante, a olhar o céu.

Cultivo a biblioteca polifônica, as mãos que me precederam ao piano e o vigoroso telescópio, que me leva a contemplar a noite fria, como os românticos alemães. Itacoatiara deu-me, desde cedo, uma proximidade com estrelas, nebulosas e parcelas de infinito.

Darwin adentrou o cromatismo da mata atlântica, aqui, na serra da Tiririca, onde me entrego ao ócio das manhãs, subindo e tornando a descer a pedra do Costão.

Tornei-me adicto da maresia. Preciso de iodo e sal. Não posso viver sem o mar, sem as ondas que se agitam.

Morder o mundo e abocanhá-lo, a partir dessa fronteira, sonho e matéria, aqui, onde transito e onde me perco, entre antúrios e magnólias. Talvez entre Florbela e Sophia, Al Berto e Pascoaes, Helder e Jorge, Fernando e Camões.

“Tranquei o mundo lá fora”, disse um poeta brasileiro. Pois cada qual se reinventa, ao medir forças com a pandemia. Um mundo vasto que se desbasta.

A realidade virtual, a ideia mística e técnica, empresta caráter relativo ao que está próximo ou distante. Cresce o desejo de estarmos juntos e a revisão geral da biopolítica.

Assim, quando cai a noite, brilham os olhos de Ana, como dois gatos. O que virá depois? A fome nas favelas, a dança macabra no cárcere, o jogo de xadrez da morte e Antonius Block? Sinais do Dia do Juízo, como apregoam os corneteiros do fim do mundo. Igrejas abertas, durante a pandemia, para aquecer a venda de promissórias e salvo-condutos para depois do Apocalipse.

A política do vírus e o vírus da política perversa, a pandemia e o pandemônio, produzem fortes dissonâncias. Mas a sociedade civil compreende a gravidade e não abre mão do isolamento. As comunidades mais pobres oferecem as respostas mais solidárias e criativas.

Morre-me um parente na Toscana. As janelas da Itália perdem um cantor. Ana escreve um diário sutil, a tradução do mundo, em haicais e iluminuras. Indaga para onde caminhamos e até quando haverá mundo?

Não o mesmo, talvez. Sairemos diversos, mesmo de Itacoatira. E terá de ser forçosamente outra civilização, voltada para a humanidade e a Mãe-Terra.

Lembro-me de Jorge de Lima: “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”.

 

Marco Lucchesi
Premiado poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor, sétimo ocupante da cadeira nº15 da Academia Brasileira de Letras.