Da vida todos somos aprendizes, pois a riqueza e o sentido do viver não permitem simplismos. Enquanto dom e tarefa, a vida é mistério. Por isso mesmo, não cabe nos limites de legislações, ultrapassa considerações políticas, não havendo abordagem confessional em que se encerre. Impossível esgotar-lhe o sentido, por mais completa que seja a narrativa. E o seu entendimento exige peregrinar às suas raízes, a seus sentidos, aos alicerces.

A vida é mistério, pelas profundezas de suas origens, e fonte, pela profundidade de sentido. Na sua maestria, Jesus a coloca como meta de sua missão, ao dizer: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”, conferindo-lhe sacralidade e constituindo a misericórdia como o parâmetro mais alto de seu adequado tratamento. Assim, institui e eleva, para os que n’Ele creem, o valor incomparável da pessoa humana. A vida é, pois, dom que se estende para além das circunstâncias da existência terrena, porque consiste na participação da própria vida em Deus. E a sublimidade própria da vida de cada pessoa revela a grandeza e o valor precioso da vida de toda a humanidade.

O evangelho da vida acena com a condição de aprendizes a todos os que têm a vida como dom e tarefa. Sua preciosidade se manifesta, de modo completo, na encarnação do filho de Deus, ao aceitar a morte na cruz, pelo resgate de todos. Firma-se, assim, entre Deus e a humanidade, o compromisso inarredável de defender a vida de todas as ameaças, em todas as suas etapas. Compromisso que deve se fortalecer neste tempo de impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à vida humana, a nações inteiras, particularmente aos indefesos e vulneráveis. São muitas as chagas expostas que atentam contra a vida, a exemplo da fome, da miséria, das epidemias, das guerras, de feridas com modalidades inéditas e inquietantes. Crescem as formas aviltantes de violências. Frutos de preconceitos e racismos, ferem particularmente os mais fragilizados e os excluídos, apontando a urgência de se rever as legislações no sentido de impedir que se chegue a absurdos ainda maiores. O panorama dos diferentes atentados à vida desafia a sociedade contemporânea a encontrar novas respostas e a confeccionar um tecido consistente, capaz de operar as mudanças necessárias nos vergonhosos cenários marcados pelos extermínios, pela eliminação de vidas.

O desafio é posicionar-se ante todos esses atentados, ante um contexto cultural que confere aos crimes contra a vida aspectos inéditos e iníquos. A partir das graves preocupações advindas da própria opinião pública, tenta-se justificar a liberdade individual de escolhas e procedimentos que atentam contra a sacralidade da vida. O desafio se torna ainda maior quando se constatam profundas alterações na maneira de considerar a vida, a vida de todos, e as relações entre as pessoas. Há, pois, nítido processo de afastamento dos princípios basilares, como causa de uma derrocada moral, dificultando o necessário retorno às fontes de inspiração e de clarividência em torno da sacralidade das vidas todas. E sem referências e princípios, as abordagens ocorrem no burburinho de vozes da turba. Compromete-se, assim, a qualidade do que se escolhe, do que se legisla, do que se sente, e as consequências são notórias: a vida passa a ser tratada por alas, por interesses, por disputas e até pelo oportunismos de se fazer reconhecido; por interesses político-partidários, além das razões extremistas e fundamentalistas – todas distanciadas do inegociável.

As vozes se tornam opiniões próprias, de lugares hermenêuticos contaminados, com dificuldade de se perceber qual é o verdadeiro sentido, por não se saber retornar à fonte. Também por falta de traquejo de lidar com princípios, nota-se um silêncio sepulcral e omisso. Muitos não dizem nada por receio, porque se promovem em meio às vozes. Tudo se reduz a uma formulação prosaica. São muitas vozes e muitas contradições: a voz em defesa de algo ou de alguém é a voz que ao mesmo tempo pisa a honra e fere a dignidade do outro, com o descalabro interesseiro de anatematizar um e canonizar outro. Anatematiza quem parece ser uma voz diferente, desconhecendo sua compreensão e desconsiderando uma vida de feitos e comprometimentos. Canoniza até mesmo quem ainda é neófito, inexperiente, e apresenta argumentos equivocados.

Do mesmo modo que a fé se torna estéril, quando não consegue ser uma experiência de testemunho transformador, esterilidades se perpetram em vozes cujos sons não ecoam o que, cotidianamente, tem que se buscar na fonte-princípio. Os pitagóricos diziam que o princípio é a metade do todo. Se falta esta primeira metade, na tarefa de construção de um novo tecido social, cultural e político, com resultados efetivos sobre leis, costumes e estilos de vida, faltará a base para a segunda metade. Vozes serão muitas, como neste tempo de um coro dissonante, que exige dos aprendizes investimento em harmonias. E, assim, participem do coro dos lúcidos, cada vez mais, vozes coerentes e propositivas, capazes de imprimir as grandes mudanças neste tempo que precisa ser urgentemente novo para se promover e salvar vidas.

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).