Neste mundo cada vez mais dividido, marcado pelos esfacelamentos da cultura contemporânea, polarizações e extremismos, a recomposição da unidade, sem pretensão de uniformidade, é tarefa cidadã. Sublinhe-se: a construção da unidade é essencialmente tarefa cristã, pois remete a uma amorosa oração nascida do coração de Jesus, dirigida a seu Pai – Pai de todos. Jesus pede a graça para que todos sejam, ainda que uma centelha, da intimidade-unidade que Ele experimenta na relação com seu Pai. Essa prece deve ressoar, cada vez mais forte e contundente, no coração de todos os crentes. O pedido para que “todos sejam um” desdobra-se em tarefa cristã urgentíssima, compromisso de fé e necessidade cidadã, pois as fissuras na unidade geram graves prejuízos.

Compreende-se, assim, a razão profunda e inegociável que motiva a Igreja na vivência, a cada ano, da Semana de Orações pela Unidade dos Cristãos. Um tempo celebrado nesta semana, quando os fiéis se preparam para a festa de Pentecostes. Ora, sem a força e a moção do Espírito Santo de Deus não se consegue qualificar a condição humana para atingir o patamar diferenciado da unidade. Por isso, no horizonte dos propósitos do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica, há mais de cinquenta anos, de maneira fiel à sua identidade e à sua missão no coração do mundo, insiste na restauração da unidade dos cristãos. Todos que se professam discípulos e discípulas de Jesus Cristo se apresentam como sua verdadeira herança. Mas, muitos caminham por rumos diferentes, como se o próprio Cristo fosse dividido. Essa divisão, na contramão da unidade – traço identitário da fé cristã – contradiz abertamente a vontade de Jesus. É, incontestavelmente, um escândalo para o mundo. Não somente um escândalo, mas também um entrave, pois enfraquece a força testemunhal que poderia conduzir sociedades de maioria cristã à vivência fiel dos valores do Evangelho de Jesus Cristo.

Esse enfraquecimento é o que ocorre na sociedade brasileira, de maioria absoluta cristã, mas lamentavelmente marcada por contradições. O Brasil convive, por exemplo, com vergonhosa desigualdade social e com posicionamentos extremados, obstáculos para o diálogo e a construção de entendimentos. Por que os cristãos não estão dando conta de ajudar a sociedade a alcançar novas respostas para os problemas sociais que precisam ser solucionados com rapidez? A fé cristã tem uma mística-poética com propriedades, pela força do testemunho, de impulsionar a cultura da justiça e da paz. Ser de Cristo é acolher o chamado à unidade e abrir-se à aprendizagem das dinâmicas e experiências que possam promover e efetivar uma configuração civilizatória muito diferente dos cenários existentes.

Abrir-se à aprendizagem de novas dinâmicas capazes de gerar uma realidade diferente, de mais justiça e paz, não é tarefa simples. Exige o esforço de trilhar uma peregrinação que inclui sofrer com perseguições e oposições. Demanda muita envergadura humana – pessoal, comunitária e social – para se evitar o risco de reduzir a profissão e a vivência da fé ao estritamente confortável e intimista. Também por isso, o movimento ecumênico deve ganhar cada vez mais espaço na pauta de todos os cristãos, para fortalecer o testemunho de fé desdobrado em compromisso com a verdade, com o bem e com a justiça. Ora, o cristianismo na sua dinâmica de valores e vivência da fé tem singulares propriedades transformadoras, pelo caminho do diálogo, na experiência unificadora da oração que se desdobra em defesa da vida.

A negação da vida é um desafio à fé cristã, pois os discípulos de Jesus precisam sempre contribuir, com rapidez e qualidade, para a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Inscreve-se neste compromisso de fé, que é também sociopolítico, a mística do anúncio e do testemunho do Reino de Deus. São raízes que não podem ser desconsideradas pelas suas propriedades necessárias na correção de descompassos ideológicos, para capacitar o diálogo, qualificar o testemunho e garantir saberes com o sabor do Evangelho. O ecumenismo precisa ser, cada vez mais, força propulsora do amor cristão – como experiência de redenção e transformação.

Os discípulos de Jesus devem reconhecer e partilhar estima pelos bens verdadeiramente cristãos, oriundos de um patrimônio comum. O ponto de partida será sempre reconhecer as riquezas de Cristo, em estrita fidelidade a elas, sem distorcê-las, pelo diálogo e oração comprometidos com a afirmação da vida. Pela unidade, como tarefa cristã, os cristãos poderão efetivar grandes e urgentes transformações, em oposição a negacionismos, violências. Investir na unidade é promover a vida, atitude que requer humildade e, especialmente, o reconhecimento da centralidade de Cristo – o único que faz do que é dividido uma unidade.

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).