Luís Corrêa Lima

 

O carnaval carioca trouxe neste ano uma grande novidade. A escola de samba Paraíso do Tuiuti homenageou a primeira travesti da qual se tem registro na história do Brasil, já no século XVI. O samba-enredo se intitula: “Quem tem medo de Xica Manicongo?”. A escola trouxe para a avenida as gírias do ambiente das travestis, denunciou a hostilidade e a violência que sofrem e opôs-se ao “velho discurso cristão”. O tema da Tuiuti e as questões envolvidas merecem reflexão.

Pouco se sabe sobre esta primeira travesti. Nas denúncias feitas à Inquisição na Bahia, consta que o escravo e sapateiro Francisco Manicongo tinha fama de ser sodomita e se vestia como mulher, conforme supostamente faziam os sodomitas passivos no Congo e em Angola. Após sucessivas repreensões, Manicongo deixou de usar vestes femininas. No século XXI, a Associação de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro (ASTRA-Rio) atribuiu-lhe o nome social póstumo Xica Manicongo. Criou-se também o Troféu Xica Manicongo voltado aos direitos humanos, cultura e promoção da cidadania de travestis e transexuais. Portanto, ela se tornou um ícone do movimento social da população trans, uma figura ancestral e afirmativa.

A introdução do samba-enredo denuncia o numeroso e assustador assassinato de pessoas LGBT+ no Brasil. A letra fala da “bicha invertida e vulgar”, a “bruxa do conservador”. “Eu, travesti, estou no cruzo da esquina pra enfrentar a chacina”. E desafia as religiões majoritárias do país:

“Este dedo que acusa

Não vai me fazer parar

Faz tempo que eu digo não

Ao velho discurso cristão.”

De fato, o velho discurso cristão tem legitimado a repressão a essa população em nome do combate à sodomia. Este é o nome dado à tentativa dos habitantes da cidade de Sodoma de praticarem violência sexual contra os hóspedes do patriarca Ló, resultando em um castigo divino que destruiu toda a cidade e matou seus habitantes (Gênesis 19). Originalmente, tal violência nada tinha a ver com o amor entre pessoas do mesmo sexo, ou mesmo com relações sexuais livremente consentidas entre pessoas adultas do mesmo sexo. Mas uma tradição posterior a associou à prática homossexual, criminalizando-a por muitos séculos no Ocidente a fim de supostamente defender a civilização do castigo divino. Essa criminalização foi acompanhada de uma forte execração das minorias acusadas que ainda perdura. O desfile da Tuiuti corajosamente denunciou estes males.

Se há um velho discurso cristão, é preciso reconhecer que há também um novo em sentido contrário. Na Igreja Católica, por exemplo, o papa Francisco afirma que, assim como Jesus ia ao encontro das pessoas que viviam à margem, nas periferias existenciais, é isto que a Igreja deve fazer hoje com as pessoas da comunidade LGBT+, muitas vezes marginalizadas dentro da própria Igreja: fazer com que se sintam em casa, especialmente as que são batizadas, pois são parte do povo de Deus. Ao ser perguntado sobre qual é a coisa mais importante que as pessoas LGBT+ precisam saber sobre Deus, ele responde que Deus é Pai e não renega nenhum de seus filhos. E o “estilo” de Deus é proximidade, misericórdia e ternura. “Ao longo deste caminho vocês encontrarão Deus”.

O papa autorizou a bênção conjunta de pessoas em união do mesmo sexo, aos que, como ele diz, “vivem o dom do amor”. Francisco autorizou também o batismo de seus filhos e de pessoas trans. Para os textos bíblicos utilizados para condenar a prática da homossexualidade, ele apresenta outra interpretação não condenatória. Sem dúvida, seu ensinamento e sua prática ainda não impregnaram grande parte da Igreja Católica – mas ninguém está proibido de mudar para melhor, nem as pessoas, nem as instituições.

Um novo discurso cristão se manifesta com contundência profética quando, na catedral anglicana de Washington, a bispa Mariann Edgar Budde interpelou publicamente o recém-empossado presidente Trump em favor de LGBT+ e de imigrantes. Ela disse:

“Deixe-me fazer um apelo final, sr. presidente. Milhões depositaram sua confiança no senhor. Como o senhor disse à nação ontem, sentiu a mão providencial de um Deus amoroso. Em nome do nosso Deus, peço que tenha misericórdia das pessoas em nosso país que estão assustadas agora. Há crianças gays, lésbicas e transgêneros em famílias democratas, republicanas e independentes que temem por suas vidas.”

Resta ainda um longo caminho para que o novo discurso cristão possa suplantar o velho, para que pessoas e instituições mudem. Cada um pode, de alguma maneira, contribuir para isso. Parabéns à Tuiuti!

 

Luís Corrêa Lima é padre jesuíta, professor da PUC-Rio e autor de “Teologia e os LGBT+”.