“Três vezes vi
a lua cheia
num céu sem nuvens”
Basho
É significativa a presença do zen budismo no ocidente, e em particular na América do Norte e na Europa. Isso ocorreu por influxo de mestres e pensadores como Eugen Herrigel (1885-1955) Daisetz Teitaro Suzuki (1870-1966), e Taisen Deshimaru (1914-1982), dentre outros. Com Herrigel, a filosofia zen budista ganha terreno na Alemanha dos anos 1920, sendo sua obra A arte cavalheiresca do arqueiro zen (1948), um importante ponto de referência. Em território norte americano, a influência decisiva vai ser de Suzuki, sendo suas principais obras os Ensaios sobre o zen budismo (em 3 volumes: 1927, 1933 e 1934) e a Introdução ao zen budismo (1934). E o influxo do zen budismo na França foi favorecido pela marcante presença do mestre Taisen Deshimaru, que chegou na região em 1967. É sobre ele que vamos dedicar nossa reflexão nesse breve ensaio, aproveitando o ensejo da publicação na França de uma obra que retrata pela primeira vez, a vinda e atuação de Deshimaru na Europa: Dominique Blain. Sensei Taisen Deshimaru, maître zen. Paris: Albin Michel, 2011. Essa obra serviu de base para a reflexão que se segue.
A expressão japonesa sensei designa, em sentido amplo, o mestre, o mentor e o educador. Assim veio reconhecido Taisen Deshimaru, por sua vida, exemplo e trabalho. Entre seus pares da tradição sôtô foi também identificado com o titulo de rôshi (mestre confirmado). Entre suas influência maiores podem ser destacadas as presenças de Dôgen (1200-1253), o fundador do Sôtô Zen no Japão e do mestre Kôdô Sawaki (1880-1965), outro importante guia zen japonês do século XX. Foi por esse mestre que Deshimaru foi ordenado monge, em 1965, e encaminhado para o ocidente com a intenção de reflorir o budismo. E assim ocorreu, tendo ele chegado à França em julho de 1967, aos cinqüenta e três anos de idade, estando ainda a Europa na ocasião bem virgem do espírito espiritual oriental.
O mestre Dôgên, que preferia utilizar a expressão dharma (o caminho, a via) em lugar de zen, dizia que o crescimento espiritual não dependia da elevação de templos ou da multiplicação das imagens de Buda. Não era esse o caminho ideal de expansão da espiritualidade e fator de iluminação. A seu ver, bastava uma choupana e a sombra de uma árvore para a prática do zazen (a meditação sentada). Em seu clássico Shôbôgenzô, Dôgên sinalizava que o melhor lugar para estudar o caminho era nas montanhas, com a prática do zazen. Não há para ele melhor via em direção à “pura subjetividade” do que a prática da meditação sentada: “deixar cair o corpo e a mente” (shin jin datsu raku). É o melhor recurso para superar a dicotomia entre o sujeito e o objeto. É também o canal de acesso para a “presença mental”, onde o sujeito deixa-se iluminar pelas coisas e cria a possibilidade de alcançar a verdade do Buda. Na esteira de Dôgên, Sawaki consagrou igualmente toda a sua vida à prática do zazen.
Em dedicação profunda a esta prática de desapego e abertura, de mergulho no sûnyatâ, Deshimaru afirmava que “o zen é o zazen”. Nada mais fundamental do que “deixar passar os pensamentos” e buscar o claro enigma da consciência profunda, para além das agitações da superfície. Deshimaru dizia que o universo inteiro está concentrado num grão de trigo e que se o espírito firma-se na pureza é como dar nascimento à primavera. Quando o corpo e a consciência deixam-se penetrar pelo espírito do zazen irradia-se um som que se assemelha ao do vento quando atravessa os ápices dos pinheiros. Mais que seguir os rastros de seus mestres, Deshimaru buscava aquilo que os mestres buscavam. Não há que imitar senão a Via, gostava ele de repetir.
A pista que ensejava seguir era a da profundidade. Numa de suas inúmeras cartas endereçadas a seus discípulos dizia: “Eu creio que vocês deveriam compreender a verdade do budismo. A Índia atual ou o Japão necessitam de uma grande revolução, voltada para a retomada da essência da verdadeira religião. A verdadeira essência do budismo ou da religião não existe mais nos templos ou mosteiros, mas na profundidade de nossos espíritos”. A seu ver, a religião do porvir transcenderia dogmas e teologias, fundando-se, sobretudo, num “senso religioso oriundo da experiência de todas as coisas, naturais e espirituais, em espírito de total unidade”. Em linha de descontinuidade com a tradição da modernidade pós-cartesiana, dizia: “Eu não penso, logo eu sou”. Buscando fidelidade ao seu pensamento, há que deixar-se habitar pelo vasto e ilimitado espaço do Vazio, um Vazio pleno de significado. Há que deixar-se envolver pela “musica rítmica do universo”, como “crianças do Sol e da Terra”. Partilhava com seu amigo, Claude Lévi-Strauss, a idéia de que o homem ocidental cunhou sua perspectiva equivocadamente, entendendo-se mais como um ser pensante do que como um ser vivente, tornando-se, assim, incapaz de harmonizar-se com a natureza.
O caminho proposto por Deshimaru vai na linha de uma espiritualidade interreligiosa, de profunda harmonização. Dizia, com acerto, que uma só flor não faz uma guirlanda e que uma única mão não é capaz de produzir o som. Para que isso ocorra é necessário o exercício de comunhão. Aquilo que visava em sua vida e prática era o caminho em favor da essência de todas as formas de espiritualidade, em sintonia com o espírito zen. Admirava os evangelhos, que abrigavam as atitudes de abertura de Jesus, e também a rica espiritualidades dos mestres sufis. Tudo aquilo que reforçava os caminhos de profundidade espiritual, era por ele acolhido e incentivado. Sua espiritualidade não estava deslocada do tempo, nem do exercício essencial da compaixão. Dizia que aqueles que se sentiam incapazes de amar os outros estavam distantes da compreensão do zen. Sublinhava que “a dimensão última vivida nas profundezas do ser, a dimensão suprema da vida” envolvia a consciência e o amor universal.
Foi irradiadora a presença de Deshimaru na França, sobretudo depois que conseguiu firmar um lugar para realizar o seu sonho de reunir toda a sangha da comunidade européia para a pratica do zazen. Isto aconteceu em Gendronnière, a partir de junho de 1979. A seu redor reuniu um grande círculo de discípulos e amigos, entre os quais pensadores como Karl Jaspers, André Malraux, Jean Paul Sartre e Claude Lévi-Strauss. Também entre seus seguidores, artistas como Maurice Bejart e Arnaud Desjardins. O encontro e a experiência com Deshimaru favoreceu a Bejart a viva consciência da importância essencial da busca interior para a conformação da arte da dança. Dentre seus inúmeros discípulos, o cineasta Arnaud Desjardins, que dedicou a ele um dos belos filmes em torno da tradição zen: “Zen ici et maintenant et partout et toujours”.
Sensei Taisen Deshimaru firmou-se como um verdadeiro embaixador do Sôtô Zen na Europa, e em particular na França. Sua mensagem irradiou-se com sua prática e seu exemplo. Suas inúmeras viagens aos Estados Unidos, Montreal, China, Casablanca, Alemanha, Suíça e Londres serviram para reforçar sua influência num âmbito mais amplo. Um de seus motes singulares, tomados da Sutra do Lótus, indicava que o verdadeiro tesouro está bem próximo da cada um. Não é nos confins da terra que se encontra a paz derradeira, mas ela está aqui bem próxima, ao alcance da mão e do olhar. Basta abrir os olhos e ver: “simplesmente ver o mundo tal como é”. É exercitar-se no precioso dom de si. E sem perder jamais o otimismo, mesmo quando os horizontes se encurtam: “Quando uma porta se fecha, uma outra se abre”.
Deixou como legado singulares trabalhos em torno de sua experiência com o zen budismo, entre os quais destacam-se: L´autre rive. Textes fondamentaux du zen; Zen et vie quotidienne; Le bol et le bâton; Questions à un maître zen; La pratique du zen. Faleceu em abril de 1982 em razão de um câncer no pâncreas. Como ocorre com os grandes mestres, recebeu após sua morte o nome honorífico de Keisan, ou seja, aquele que desvendou a montanha.
Faustino Teixeira
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.