A relação entre cristianismo e população LGBTI+ é marcada por inúmeros conflitos e por hostilidades dilacerantes. Um exemplo disso são as declarações do patriarca ortodoxo de Moscou, no ano passado, considerando justa a invasão da Ucrânia pela Rússia. Para ele, é preciso enfrenta o clube de países que impõe a seus membros o aterrorizante desfile do orgulho gay. Com a força do pecado, obrigam o que é condenado pela lei de Deus, negando o próprio Deus e Sua verdade às pessoas. Jamais se pode tolerar os que destroem a lei moral, eliminam a linha entre santidade e pecado, e defendem o pecado como modelo de comportamento humano.

O presidente russo Wladimir Putin endossou a posição do patriarca, justificando esta guerra para evitar a destruição da família, da identidade cultural e nacional. E asseverou: “protegeremos nossos filhos da degradação e da degeneração”. Evidentemente, nem todos os que se opõem à cidadania da população LGBTI+ justificam a invasão da Ucrânia. Porém, muitos enxergam nesta cidadania o que é condenado por Deus, bem como a destruição da lei moral.

Bem diferente tem sido a postura do papa Francisco ao longo do seu pontificado. Há dois anos, ele enviou uma mensagem pelo Twitter no Dia do Orgulho LGBTI+, 28 de junho: “Se formos dóceis ao amor, o Espírito Santo, que é o amor criativo de Deus e que traz harmonia às diversidades, abrirá os caminhos para uma fraternidade renovada”. Isto nada a ver com o pânico moral dos profetas da catástrofe. Desde então, o papa reiterou seu apoio ao reconhecimento civil de uniões homossexuais, propôs a atenção pastoral aos que vivem nestas uniões para progredirem no encontro com Cristo, e se declarou pela descriminalização da homossexualidade em todo o mundo.

À irmã norte-americana Jeannine Gramick, que completou o jubileu de ouro no trabalho apostólico com os LGBT+, Francisco felicitou: “foram 50 anos com este ‘estilo de Deus’, 50 anos de proximidade, de compaixão e de ternura”; como a ternura de uma irmã e de uma mãe. Convém observar que o trabalho louvável desta irmã chegou a ser proibido no passado, por discordância da doutrina da Igreja Católica sobre a imoralidade da prática homossexual. Mas a irmã Gramick não o interrompeu.

Os pais com filhos homossexuais foram exortados pelo papa a não se assustarem e a não condenarem seus filhos. Em vez disso, devem ajudá-los e acompanhá-los sempre. Sobre a coisa mais importante que pessoas LGBT precisam saber sobre Deus, Francisco diz que Deus é pai e não renega nenhum de seus filhos. E reitera que o estilo de Deus é proximidade, misericórdia e ternura. “Ao longo deste caminho vocês encontrarão Deus”. A um católico LGBT que tenha sido rejeitado pela Igreja, o papa pede que não considere isto não como rejeição da Igreja, mas de pessoas na Igreja. “A Igreja é uma mãe e reúne todos os seus filhos”. No ano passado, Francisco recebeu seis mulheres transgênero. Uma delas, Alessia Nobile, o presenteou com um livro em que conta sua vida. Ele a encorajou, dizendo: “ótimo, você fez muito bem em escrever sua história”. E lhe recomendou ser sempre ela mesma, mas não se deixar envolver pelo preconceito contra a Igreja.

A postura do papa pode levar alguém a pensar que ele contraria a doutrina. Mas não. Ele tem consciência clara de que é essencial na mensagem cristã, bem como do que não é e precisa evoluir. Quando o Catecismo da Igreja Católica completou 25 anos, Francisco declarou: “não se pode conservar a doutrina sem fazê-la progredir, nem se pode prendê-la a uma leitura rígida e imutável sem humilhar a ação do Espírito Santo”. Em seu pontificado, ele dá mostras deste progresso e da rejeição à leitura rígida que humilha o Espírito divino.

A coragem da mulher trans Alessia, elogiada pelo papa por ser ela mesma e contar sua história, é também a coragem de outros LGBTI+. Os músicos católicos Gil Monteiro e Bruno Camurati anunciaram publicamente que são gays. Bruno afirmou que só canta o que canta por ser quem é. Suas quase 40 canções passam por sua existência, por ter se deparado com portas fechadas e acessos negados, mas também por sentir que Deus lhe ama e abraçar esse amor. Ele sabe que Deus se serviu desta história e de sua música para tocar o coração das pessoas. Por isso tem muito orgulho de ser quem é. Gil, por sua vez, conta sua história e canta suas músicas para acolher quem se identifica com elas. Sabe que sua sexualidade é parte do plano de Deus para a sua vida. E assegura: “eu não sou um erro de Deus”.

Na Alemanha, o frei franciscano Markus Fuhrmann, assumidamente gay, foi eleito provincial de sua ordem. Ao ser perguntado sobre por que expor este assunto publicamente, responde que deseja deixar claro quem é e o que defende: “se eu mesmo sou gay, quero mostrar que também posso fazer parte da Igreja neste ministério”. Ele deseja que isto seja considerado como uma oportunidade, pois os membros da igreja têm diferentes cores. Isto é o que Deus quer e corresponde à diversidade da criação.

A autoestima LGBTI+ nada têm de soberba ou arrogância, mas é o contentamento pelo justo valor de si próprio como filha ou filho de Deus, amado por Ele a despeito de tanto ódio e incompreensão. A cidadania desta população nada tem de ameaça. O Manual de cristianismo e LGBTI+ (disponível aqui), fazendo uma releitura da tradição judaico-cristã em chave inclusiva, é um material muito útil para o fomento desta autoestima e para a luta em favor desta cidadania. As igrejas cristãs e a humanidade muito podem ganhar com isto.

 

Luís Corrêa Lima é padre jesuíta, professor da PUC-Rio e autor do livro “Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos” (Ed. Vozes).