A morte de Marilia Mendonça, a rainha da sofrência loura e vibrante, aos 26 anos, chocou o país. Por um lado, seus vários milhões de seguidores e fãs, boa parte deles mulheres, sentiram-se privados da presença de sua artista, que cantava sobre temas que lhes chegavam ao coração. Por outro lado, para os que não eram assíduos ouvintes da cantora, o choque veio da compaixão e da emoção de ver uma vida ceifada no momento do desabrochar, a orfandade do filho de apenas 2 anos, a dor da mãe que teve de ser atendida pela emergência médica ao receber a notícia.

Porém, em meio ao tumulto das notícias que tomaram a quase totalidade do tempo do noticiário nacional, outra dimensão da morte da artista começou a emergir: as letras de suas músicas que se dirigem às mulheres em um tom convocatório e libertador. O canto de Marilia e suas composições têm como destinatárias as mulheres vítimas do machismo, dos homens infiéis que abusam de seu amor traindo-as e maltratando-as. Pertencem ao subgênero do sertanejo, tão característico do interior brasileiro, e já têm nomenclatura própria: feminejo.

Longe de tratar a opressão feminina como destino – à semelhança das muitas canções de outros tempos – reduzindo a mulher a uma vítima dependente e subjugada ao homem, a mulher presente no canto de Marilia levanta a cabeça e responde à altura as traições do parceiro. As mulheres deliram diante do convite da artista, vibrando e cantando com ela. Os depoimentos de fãs dados após sua morte confirmam isso, ao dizer que a goiana de voz potente lhes mostrou seu valor e lhes deu coragem para tomar atitudes diante das quais antes sentiam medo.

A “rainha da sofrência”, na verdade, falava a partir de suas experiências, na tentativa de com isso ajudar suas irmãs de gênero. É assim que na canção “Infiel” exorta as mulheres traídas a mandar seu parceiro “morar num motel” e “assumir as consequências dessa traição”. Porque, já que “quem eu quero não me quer e quem me quer não vou querer”, ela não vai ficar chorando e sofrendo sozinha e abandonada, “todo mundo vai sofrer”.

O feminejo sacode a mulher e lhe diz para superar a rejeição do macho. A mulher que compõe e canta fala ao ouvido e ao coração de suas companheiras. Diz que para aquele homem ela não passa de um plano B, que se nenhuma outra da lista quisesse sair com ele, então ele ligaria para elas. E grita com força: “De mulher pra mulher: supera”.

Na canção “Alô porteiro”, Marilia vai mais longe. Canta em primeira pessoa. Diz ao namorado que a traiu, que pretende voltar instalar-se de novo em seu apartamento, cansou da brincadeira e agora ele vai embora. Mais ainda, liga para a portaria do prédio e fala ao porteiro: “Chame o táxi que ele vai pagar/ Esse homem que está aí/ Ele não pode mais subir/ Está proibido de entrar”.

O universo feminino ao qual Marilia se dirige, no entanto, representa um Brasil que não abrange a totalidade das mulheres do país. Trata-se de um público que ganha dinheiro, a tal ponto que pode se permitir pagar a entrada de seus shows. As jovens que aparecem delirando nos vídeos onde a cantora lhes lança suas exortações em forma de música vestem roupas de acordo com as personagens presentes nas novelas da Globo e fazem chapinha e “brushing” nos cabelos. No ambiente interiorano onde circulam há prosperidade e elas mordem uma fatia da mesma. Os homens com quem se relacionam têm, além do machismo visceral da cultura a que pertencem, a arrogância de seu poder econômico, que é mais um elemento para esmagá-las.

Existe um outro Brasil onde o canto de Marilia chegou, mas encontrou diferente eco. Trata-se do universo das mulheres muito pobres, que vivem onde não há comida suficiente, nem energia própria para ligar a TV e onde o celular não tem pacote de dados para ver a “ídala” na telinha. Ali as mulheres carregam a família nas costas, suportando muitas vezes a indesejável convivência com o companheiro, que é ao mesmo tempo agressor e dominador. Ali os jovens procuram o tráfico como via de ascensão e queda em tempo breve. E as mulheres muitas vezes não podem chamar o porteiro e mandar o homem infiel embora porque dependem totalmente dele.

Em ambos os grupos, porém, a violência de gênero impera. As canções da jovem mulher que foi vítima de um acidente fatal na última sexta feira dão testemunho disso no universo imenso de suas fãs do interior brasileiro. E chegam como sonho inalcançável a essas outras fãs presas pelas correntes da pobreza extrema que não têm condições de mandar embora o homem que as sustenta e que está afundado na pobreza como elas. Frustrado e alcoolizado ele ainda bate nela e nos filhos. O sonho desta mulher é sobreviver e enquanto cozinha o osso que conseguiu nos fundos do supermercado talvez ouça a rainha da sofrência a lhe dizer: supera.

Marilia se foi acompanhada da dor da família e das homenagens dos fãs. Suas canções ficaram e serão cantadas e lembradas pelas mulheres que começam a despertar e fazer ouvir seu lamento coletivo, clamando por igualdade de direitos, respeito, amor e justiça. Ficou também seu legado de mulher comprometida, que se posicionou politicamente contra uma proposta que desrespeitava as mulheres e vários outros segmentos da sociedade. Tomara que Leo, seu filho, possa ajudar a construir um mundo novo, onde as canções de sua mãe, semeadas com sua morte prematura, floresçam e frutifiquem em verdade e justiça.

 

Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.