O que o Papa Francisco denuncia desde o início de seu pontificado, como globalização da indiferença, acontece diariamente em várias latitudes e de diversas formas. São tão frequentes que já não chamam tanta atenção e não provocam a mobilização que deveriam. Às vezes se dão como cegueira total diante do outro que sofre, tornado invisível pelo individualismo reinante. Outras acontecem como violência inadmissível e revoltante. Ambas constituem verdadeiras tragédias humanitárias.
René Robert, suíço, casado, tinha 84 anos, era fotógrafo. Especializou-se em captar a beleza e o feitiço fascinante do flamenco contemporâneo. Morava em Paris. Aparentemente poucas vidas poderiam ser mais charmosas do que a deste homem já idoso, é verdade, mas vivia em uma das cidades mais belas e cosmopolitas do mundo. Tinha uma profissão igualmente atraente e criativa. No entanto, ei-lo que engrossa as estatísticas das 500 pessoas que morrem anualmente nas ruas das cidades francesas. Seu perfil, porém, se destaca dos demais que, em geral, são mendigos, migrantes, sem-teto, moradores de rua. Robert não fazia parte desta triste condição de vida que existe até mesmo no mundo desenvolvido.
Não se tratava de um sem-teto, mas de alguém com uma carreira profissional reconhecida. Graças a isso hoje sabemos as circunstâncias em que morreu. Todos os dias esse artista da imagem fazia sua caminhada noturna por seu bairro – na Place de la République – e no dia 19 de janeiro não foi diferente. Passando pela rue Turbigo, por algum motivo que se desconhece, caiu ao chão desacordado. E ali ficou por horas. Veio a noite, a rua ficou vazia, mas Roberto continuava ali, caído e sendo lentamente assassinado pelo frio do inverno parisiense, sem que absolutamente ninguém parasse para socorrê-lo. As pessoas tinham pressa, voltavam do trabalho, não havia atenção nem tempo sobrando para socorrer alguém que se encontra caído no chão.
As seis da manhã, uma pessoa – essa, sim, sem-teto e que não quis ter seu nome divulgado – reparou nele e chamou por socorro. Robert foi levado a um hospital, mas já era tarde. Após nove horas ao relento, morreu de hipotermia grave, ou seja, de frio. Um de seus amigos declarou a respeito de sua morte, fazendo ao mesmo tempo um exame de consciência: “Não poder ter certeza de que não me afastaria de alguém deitado na rua é uma dor que me persegue. Mas estamos com pressa, estamos com pressa, temos nossas vidas e desviamos o olhar.”
Moise Mugenyi Kagabambe nasceu na República Democrática do Congo e chegou ao Brasil 11 anos atrás, com 14 anos de idade. Hoje, tinha 24. Deixou seu país fugindo de conflitos que faziam de sua terra um lugar de violência, corrupção e criminalidade. As milícias eram ativas e Moise veio buscar a paz no Brasil, país onde acreditou encontrar um povo pacífico e cordial. Sua mãe, Ivana Lay, veio três anos depois do filho. Moise trabalhava no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca. Contribuía assim para o sustento de sua família. No dia 24 de janeiro, o jovem foi ao Tropicália reivindicar o recebimento do dinheiro correspondente ao trabalho que ali realizara.
Moise foi atacado e linchado por cinco homens nas dependências do quiosque. Os que o agrediram usaram um taco de baseball e amarraram suas mãos aos pés. Um sentou-se sobre sua cabeça até que ele não mais respirasse. O vídeo que uma testemunha fez do acontecimento mostra esse mesmo homem tentando reanimar Moise, sem conseguir. O jovem recebeu mais de 30 pauladas. As câmeras de segurança também filmaram a agressão.
Por que o fato de um jovem trabalhador ir ao local de trabalho e reivindicar receber o que lhe era devido provoca essa reação de violência? Entre várias razões emerge o fato de que Moise era negro e migrante. O racismo estrutural que divide a sociedade brasileira, bem como a xenofobia velada ou explícita que circula como veneno em nossas veias, fez com que a tragédia de Moise acontecesse de forma tão brutal e cruel.
O assassinato mobilizou a opinião pública, pelo menos alguns grupos. A mãe de Moise, inconsolável com a perda do filho, deixa perceber nas redes sua perplexidade. Vieram ao Brasil buscando paz e seu filho aqui encontrou a morte de forma violenta como acontece em seu país.
Ambas as tragédias humanitárias e suas vítimas nos interpelam. Uma, pela indiferença que se apossou de nós que não nos deixa enxergar o outro ainda que em situação infra-humana, caído ao nosso lado. Outra, pela violência brutal e exponencial que faz atacar covardemente um jovem e acabar com sua vida por não considerá-lo um sujeito com direitos e dignidade. Precisamos – e como! – examinar-nos, e meditar constante e continuamente na parábola do Bom Samaritano que o Papa Francisco propõe ao centro de sua encíclica Fratelli Tutti: “Havia um ferido à beira do caminho…” Havia, há, um ancião caído na rua em meio ao inverno glacial. Havia, há, um jovem que necessita receber os proventos que lhe são devidos. Havia, há, seres humanos que necessitam justiça e atenção. O que está acontecendo com a humanidade?
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.