Desejar a luz faz lembrar o coração inquieto de Agostinho de Hipona que, ao sentir-se confrontado pelo mal, perguntava-se: “Quem desembaraçará este nó tão enredado e emaranhado?” –”É asqueroso, não o quero fitar nem ver. Quero-vos a Vós ó justiça e Inocência tão bela e tão formosa, com puros resplendores e insaciável saturação!”.

“Quero a luz” é a expressão de um desejo a ser operado pela força de princípios inegociáveis, a exemplo da preciosa recomendação do apóstolo Paulo, em sua carta aos Romanos: “Não te deixes vencer pelo mal, vence antes o mal com o bem”. É incontestável, sabe-se muito bem, que em toda tentativa de vencer o mal com o mal, o resultado da batalha é a derrota ainda maior. Nesse horizonte se desenha preciosa lição com força de remédio ante os dramáticos cenários que pesam sobre os ombros da humanidade: somente o bem pode derrotar o mal. É essa também a receita terapêutica para sanar realidades feridas pelos constantes combates fratricidas que enfraquecem instituições no seu interno, multiplicam as violências, validam preconceitos, a exemplo das posturas racistas e excludentes.

Nesse cenário se põe a discussão acalorada a respeito de razões. Mas razões não podem ser desvinculadas de princípios. E os princípios são inegociáveis. Ao contrário disso, corre-se o risco de se permitir tudo. Não se pode simplesmente considerar que a batalha em curso seja um conjunto de meras acareações, apenas para deliberar a perspectiva de quem tem razão, agindo como se o conjunto da vida pudesse ser tratado em partes estanques. Em questão está o jogo que envolve o mal, o bem e o amor.

Diante de trágicas experiências, é próprio do comportamento humano procurar identificar as raízes do mal, explicar suas causas e fazer valer dinâmicas para a sua superação. Desafio que se torna ainda mais complexo no contexto da administração do dom precioso da liberdade humana. Assim, incontestavelmente, o bem e o mal ganham o rosto e o nome daqueles que os escolheram livremente. “Quero a luz” deve representar o desejo de, humildemente, se abrir e aprender a gramática da lei moral universal. Na gramática da lei moral está inscrito o compromisso intocável da responsabilidade para com a vida de cada pessoa, considerada dom sagrado, defensável e promovido em qualquer que seja a circunstância, por ser um bem acima de todo e qualquer bem.

Ao contemplar os cenários da sociedade mundial, não se pode camuflar a efetiva difusão de numerosas manifestações sociais e políticas da maldade – da desordem social à anarquia, da injustiça à violência contra o outro – fecundadas pela indiferença e amparadas em relativizações dos valores e dos princípios intocáveis da lei moral. O mundo está afligido por muitos males sociais e políticos, com a eclosão das violências. O investimento permanente na aprendizagem, na prática dos princípios e valores da gramática da lei moral contracena com o exercício do poder. O poder que todos têm, em medidas diferentes, como parte da composição do tecido de sua cidadania, de sua confissão de fé e nos contextos de sua representatividade e responsabilidades interage com os cenários da vida social e política.

Ensinava, com simplicidade, um mestre a seus neófitos que o poder é exercício vinculado ao desempenho de uma autoridade que lhe compete. E a autoridade, vinculada à capacidade de ser autor do bem, fruto da verdade e da consideração de princípios intocáveis que inspiram legislações, fomentam hábitos, que definem práticas e constituem o tecido da cultura, tendo a vida sempre como um dom precioso e intocável. Incontestavelmente os grandes equívocos da humanidade nascem do uso inadequado, injusto e confuso do poder individual, a partir de sua condição ou advindo do exercício que a profissão lhe compete – na vivência cidadã e nos serviços públicos.

No conjunto das muitas obscuridades encontram-se, pois, exercícios equivocados no uso e desempenho do poder. Ora, porque se tem excessivo poder, em instâncias que tomam decisões estreitadas por interesses próprios – não há vontade política de preservar a vida e defendê-la-, ora porque, não raramente, um poder é exercido sem a esperada competência humanística, apenas com o objetivo de usufruir das benesses. Há uma gama de descompassos em andamento no exercício do poder, sem poupar qualquer que seja a instância, da religiosa à judiciária, da instância familiar à política, com passagem pelos desencontros cotidianos de civilidade. Revela-se, assim, a fonte de desmandos, a falta de pudor em fazer valer o que, subjetivamente, se considera oportuno.

As sociedades mundial e local encontram-se numa travessia marcada por muitas agruras, dentre elas as feridas expostas de um poder fragilizado pelas muitas práticas equivocadas, pela incapacidade de se efetivar o que se configura na legislação, a começar pela Constituição Federal. Esse horizonte dos descompassos que envolvem desde opiniões aos seus resultados, comprometendo a vida no seu conjunto, pede uma aprendizagem nova. Isso, para conter a exorbitância no uso do poder, evitando-se a relativização do intocável, a mistura do que é imiscível – dinâmicas que atrasam processos, adoecendo o planeta e as pessoas em disputas figadais por interesses que comprometem o inegociável princípio da solidariedade. À luz da inquietação de Agostinho de Hipona, ante o mal crescente e os descompassos, todos estão desafiados a um mea culpa e a um anseio renovado por deixar ecoar no coração o desejo-experiência de querer a luz.

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).