A diferença entre ciência e fé é a seguinte: em ciência, a gente tem que ver para crer. Você observa a natureza, você observa o mundo, obtém dados sobre como o mundo funciona, analisa esses dados e entende. Pela fé, você crê para ver. A crença vem antes da visão. Você acredita naquilo, nem precisa ver nada, acredita naquilo e esse, essencialmente, é o cerne da fé, que é uma outra maneira de se relacionar com a realidade, muito diferente da ciência.
Infelizmente, hoje em dia, parece que essa questão está novamente a mil com a chamada ‘guerra’ entre a ciência e a religião. Na verdade, essa é uma guerra fabricada, porque, por exemplo, se você pergunta aos cientistas, mais ou menos 40% deles, ao menos nos Estados Unidos — não sei se existe essa estatística no Brasil, talvez seja até maior aqui —, acreditam em alguma forma de divindade, de Deus.
Eles vão para os seus laboratórios e fazem suas pesquisas sem que haja qualquer conflito entre a sua fé e a sua ciência. Ao contrário, dizem que a pesquisa os ajuda a apreciar essa divindade, ou seja, que a pesquisa os aproxima da beleza da natureza, que interpretam como sendo obra de Deus.
Para esses cientistas, existe um compromisso, uma complementaridade entre o seu trabalho e a sua fé. Não existe nenhum problema nesse caso. Mas, infelizmente, existe conflito em outras situações.
Vemos isso quando, por exemplo, grupos religiosos querem interferir no currículo escolar e ensinar, junto com a teoria da evolução, o criacionismo, a interpretação literal da Bíblia.
A criança aprende numa aula que houve toda uma evolução da vida, os fósseis etc., 3,5 bilhões de anos de evolução da vida aqui na Terra enquanto, na outra aula, o professor diz que não. Que em seis dias Deus fez o mundo, que nós somos todos descendentes de Adão e Eva e o mundo tem apenas dez mil anos.
Note que a proposta é que isso seja ensinado em pé de igualdade. São duas versões da mesma história e nenhuma é melhor do que a outra. Mas são, sim, duas histórias muito diferentes, com um objetivo muito diferente. Então, a questão é como é construída a informação na ciência.
No início, falei da questão da universalidade, como, por meio do método científico, usamos o ver para crer e não o crer para ver. A ciência é construída de forma que seja imune à crítica, ao menos após haver verificação de hipóteses por experimentos cujos resultados são aceitos pela comunidade. Não existe espaço para divagações metafísicas. É assim ou não é assim.
O que sabemos da história da vida na Terra é perfeitamente e completamente consistente com a teoria da evolução do Darwin — e com a história do cosmos, a cosmologia, que é minha área principal de pesquisa. É perfeitamente consistente com a teoria do Big Bang, que diz que o universo tem 14 bilhões de anos, e a gente pode datar isso usando nosso conhecimento dos elementos radioativos.
A datação, a questão das datas, é fundamental. Com sabemos que um fóssil tem três milhões ou 15 milhões ou 200 milhões de anos? Estudando a composição química desse fóssil. Por meio dela, identificamos quais são os isótopos radioativos, que são, essencialmente, minirrelógios atômicos que dizem exatamente a idade dos fósseis e de onde vêm. Não existe a possibilidade de um cientista afirmar: eu acho que esse pedaço de osso aqui tem três milhões de anos. Você sabe que tem três milhões de anos, com grande precisão.
Quando você contrapõe isso com uma versão que diz que os dinossauros foram extintos porque não cabiam na arca de Noé, a coisa fica muito… Você não consegue ter um diálogo desse tipo. Por quê? O problema aqui é que as pessoas querem acreditar nisso — e têm todo o direito do mundo de acreditar nisso, só que não podem usar esse tipo de versão como sendo uma versão científica das coisas: são discursos diferentes, com métodos e objetivos diferentes.
Como podemos, então, tentar conciliar essas visões?
Acho que a melhor maneira é a seguinte. Se tirarmos das religiões a roupa do dogma, qual é a sua essência, a essência de todas as religiões? É o contato com uma espiritualidade, com uma espécie de emoção primordial com o mundo, com a natureza. Sempre nasceram assim. Lembra?
No início da história da religião, as árvores eram sagradas, os montes eram sagrados, esta pedra tinha um significado. Existia uma relação de maravilhamento com o desconhecido, e essa espiritualidade é que deu origem à religião. Essa é uma sensação, uma coisa subjetiva, individual, que cada um pode ter. É uma procura de você mesmo com sua espiritualidade, perante um mundo que é muito maior do que a gente.
Se você tira o ritual, o dogma cristão, judaico, muçulmano, hindu, budista, essencialmente todas as religiões falam dessa relação do ser humano com essa espiritualidade, dessa ressonância com o mundo.
A ciência também. Por que as pessoas fazem ciência? As pessoas fazem ciência para poder se aproximar da natureza, do mundo. O espírito de busca, essa relação com o mistério, com o desconhecido é essencialmente a mesma, tão carregada de espiritualidade quanto essa religião sem roupa, vamos dizer assim, essa espiritualidade nua, essa relação com o mistério, com o desconhecido.
Assim, se a gente se esquecer dos dogmas da religião e da linguagem científica, que é o que vem depois, mas entender a subjetividade da procura das pessoas com relação a esses grandes mistérios, religião e ciência têm muito em comum.
Se quisermos entender a relação entre ciência e religião, temos que procurar esse momento, esse momento que é essencialmente essa irracionalidade, esse maravilhamento que existe com o mundo, com esse mistério. E, quando fazemos isso, aliamos esse maravilhamento com o que descobrimos sobre o universo, sobre as estrelas, sobre os planetas, sobre a vida que existe à nossa volta e a que talvez possa existir em outros lugares. E sabe o que a gente descobre? Que a vida é extremamente rara.
Você olha para Vênus, onde a temperatura na superfície é de mais de 400 graus, um efeito estufa terrível. Mercúrio é uma desgraça. Marte, se teve vida, não tem mais. Júpiter e Saturno não têm vida, impossível. Então, o que a gente aprende com isso tudo? Que a vida é extremamente rara e extremamente bela. Se existe uma nova moral que tem que ser adotada o quanto antes, é justamente o dever de celebrar a vida e sua raridade.
Creio que a grande lição que aprendemos com a ciência moderna é justamente essa, que temos uma casa que, apesar de tão insignificante, é profundamente importante no universo. A vida é rara, a vida é preciosa. Nós temos a obrigação moral de preservar essa vida e esse nosso planeta. Essa é a essência do ensinamento científico para o século 21.
Marcelo Gleiser – Revista Fronteiras