Nesses tempos de isolamento, distanciamento, onde os encontros são marcados pela dúvida; “abraço, ou não? Aperto a mão, ou não? Beijo, ou não”; quando os gestos, toques, ficam restritos, quando a espontaneidade é mascarada, como os rostos, falamos muito com o olhar, carinho, mesmo no silêncio.
Toda noite, quando faço o Exame do Dia, minha prece silenciosa vê desfilar o rosto de pessoas que moram nos meus afetos. Até o desconhecido que cruzou meu caminho e, por um acaso qualquer, me inundou de sentimentos. Rezo por elas e com elas. Mesmo na distância, meu coração continua em sintonia, em especial com aqueles e aquelas que fazem a travessia de alguma dor. Eles e elas sabem quem são. Ou não…
A dor é, para mim, um mistério. Desde menino tenho lembranças de momentos de dor. No meu caso, as alegrias foram muito maiores, mas a dor é uma ferida que, mesmo cicatrizada, de vez em quando insiste em sangrar.
Movido, o Espírito me pergunta: qual é, hoje, a idade da sua dor, Eduardo?
Explico.
Há dores infantis, aquelas que vem com a insegurança diante do desconhecido, as que estão na fronteira entre a novidade e o susto. O parto é um bom exemplo. Assim, num de repente, a tranquilidade amniótica é roubada, aperta daqui, puxa dali, luzes, sons, braços agitados em busca de um ninho que parece ter sido perdido para sempre.
Não. Logo virão colo, carinho e a dor passará.
Dores adolescentes costumam vir acompanhadas de revolta, palavras, gestos e reações intempestivas que, explosivas, não medem consequências. Podem machucar e deixar sequelas difíceis da vida curar.
A juventude da dor é enfrentada com a atrevida certeza de que se é indestrutível. “Não vem que não tem. Comigo ninguém pode”!
Pode…
É uma descoberta dolorosa perceber que a dor conhece nossas fraquezas e é lá que ela nos atinge e, dolorosamente, dói.
Chegamos à maturidade e a dor está lá, fiel e paciente, a nos esperar.
A necessidade de garantir sustento para si e para outros, os desafios do trabalho, do amor, as perdas, decepções, os fracassos. Marido, esposa, filhos, amigos, agregados, patrões e empregados, o desafio imenso do con-viver. Assim como mistérios, dores “não hão de faltar por aí”…
Mas, na maturidade, já aprendemos (ou deveríamos ter aprendido) que, exceto o motorista e o trocador, tudo é passageiro. Até a dor.
Chegamos, enfim, à última idade. Alguns dizem que é a melhor. Há controvérsias…
Minha caixinha de remédios leva ao exercício diário da humildade. O que era força, vigor, agora é fragilidade. E prece. Vestir uma bermuda sem se apoiar em algo ou alguém é esporte radical de alto risco.
O day after dos prazeres da mesa, mostra que uma boa digestão já não é mais uma certeza. Aqueles passos, lépidos, desenvoltos, cobram seu preço que se manifesta no certeiro dedo do médico que pergunta: “dói aqui”?
– Vai faltar dedo, doutor…
Exagero, mas nem tanto. Que o diga meu infartado coração.
Mas, para além das dores físicas, a dor maior de todas, em qualquer idade ou lugar, é a solidão…
Fomos criados para o encontro, a relação, o convívio. O outro traz o que me falta; o olhar diferente, o conhecimento ampliado, o sentimento afetado, aguçado.
O ser humano não quer solidão. O solidário, então…
Volto ao início desta crônica…
Em mim mora o desejo do outro.
Hoje à noite, vou rezar com meus queridos. Talvez você, que lê este texto, esteja lá e nem saiba. Não importa. Minha prece chegará aonde deve chegar.
Não sei o que vou dizer na minha oração, não há ensaio possível para essas palavras. Frases feitas, nessas horas, soam inúteis, vazias. Talvez eu reze a modo de Renato Teixeira, em Romaria: “Como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar…”
Por hora, ao longo do dia, vou estocando ternura no meu olhar. Ver tudo e todos com os olhos de Deus.
Então, no silêncio da noite, suavemente, virá a certeza de que a resposta ao poeta que perguntava: “pra quê rimar amor e dor”, sempre será: porque Esperança é outro nome do Amor.
Por falar nisso, “qual é a idade do seu amor?…
Eduardo Machado
Educador, Escritor, apaixonado pelo ser humano, um católico que tenta, cada dia mais, tornar-se cristão.