Nota em defesa do respeito à vida
Este é, sem dúvida, o momento de maior gravidade da pandemia da Covid-19, desde o seu início. Mais de um ano depois, a situação, longe de se resolver, ao contrário, piorou muito e ainda pode ficar pior, como indicam as tendências na ocorrência de novos casos e de mortes.
Desde o início, nunca foi igualitária a possibilidade de seguir as prescrições do “fique em casa”, ou mesmo do uso de máscaras e de medidas higiênicas. Partes expressivas da população, pobres e cada vez mais empobrecidas, não tinham recursos para tal e necessitavam “batalhar o seu ganha pão”. Com o desemprego ascendente, o desespero bateu mais forte nas portas dos brasileiros, gerando pânico, o que se somava, de forma cruel, ao medo de morte pela Covid-19.
A polarização entre seguir as medidas de segurança sanitária ou preservar a economia foi apresentada pelo governo federal como um imperativo que incutiu na população um pensamento perversamente dicotômico, sem que este mesmo governo oferecesse uma alternativa que demonstrasse apreço pela vida dos brasileiros e brasileiras. Muito pelo contrário, recursos preciosos foram usados em troca de favores políticos ao invés de serem utilizados para a compra de vacinas. Da autoridade máxima do país, observamos exibições públicas contínuas de desrespeito às medidas de enfrentamento da pandemia, incentivo a medidas inócuas e de completo descaso e insensibilidade com a dor e sofrimento dos afetados e de suas famílias. Nenhuma expressão de solidariedade e respeito tem sido registrada.
A arte de governar exige exemplo e manifestação concreta de interesse pelo bem comum, além de serenidade e sabedoria para guiar a população na direção de medidas que a protejam. Entretanto, o que temos presenciado é a produção de desorientação deliberada, por meio de palavras e ações que não param de se contradizer, o que gera ambivalência, dificuldade de tomar boas decisões, paralisação e crise social e psíquica profundas nas populações, especialmente de seus grupos mais vulnerabilizados, seja ao adoecimento, seja à ausência dos meios de sobrevivência.
Ainda que conflitos existam no mundo inteiro sobre como gerir a pandemia, todos os governos que se pautaram e apostaram nos resultados que a ciência – seja ela biológica, epidemiológica, social ou econômica-, apresentava, investiram recursos financeiros vultosos em rendas emergenciais para seu povo e para apoio às atividades econômicas, aos empresários, pequenos produtores, comerciantes e aos trabalhadores/as. Os estudos e a experiência de epidemias anteriores, e até da atual, demonstram que aqueles que melhor controlaram a transmissão e seus efeitos, além de preservarem vidas, mais rapidamente recuperaram sua economia. Esses resultados têm sido vistos em países no mundo inteiro, mesmo entre aqueles duramente afetados pela Covid-19. Assim, é urgente que o governo federal do Brasil siga esses modelos exitosos e se congregue com governadores e prefeitos de estados e cidades brasileiras envolvidos na construção de uma grande Frente Nacional de Enfrentamento da Crise, assim como com entidades da sociedade civil, para buscar uma saída, para mitigar essa situação sócio sanitária calamitosa, e que gera, evidentemente, dor e sofrimento.
O oposto dessa caminhada é continuar a incitar a população a se insurgir contra o lockdown e as medidas de distanciamento social, fazendo espetacularização, inclusive, com o suicídio de um trabalhador. Presidente, uma carta deixada por um trabalhador que realiza um ato extremo de retirar a sua própria vida não pode ser profanada! Não é possível ser insensível ao que o seu gesto desesperado revela de um país, onde o arrocho de uma economia, pautada nos cânones da austeridade, antes e durante a pandemia, abandona as pessoas à própria sorte. Presidente, não se pode matar os mortos! Precisamos velá-los, honrá-los e arregaçarmos as mangas junto ao trabalho heroico e incansável daqueles e daquelas que não param de tentar salvar vidas. Não é possível continuar espalhando discórdia, desinformação e desordem mental. Precisamos de paz, serenidade, racionalidade e ética para vencer a Covid-19.
Importante assinalar que o suicídio é um importante problema de saúde pública no Brasil. Dados da Organização Mundial da Saúde e da Organização Pan-Americana de Saúde evidenciam a tendência de crescimento das taxas de suicídio em todo o mundo, observando-se também sua relação com o aumento da precarização social do trabalho e da pobreza. O suicídio não é apenas um ato individual, uma decisão pessoal de acabar com a própria vida – ele é um fenômeno socialmente tecido pela perda de vínculos de proteção comunitária, familiar, de perspectivas de futuro. Portanto, trata-se de um problema que necessita de políticas públicas bem estabelecidas. Não são as medidas necessárias para o adequado enfrentamento da pandemia que estão produzindo atos trágicos de violência contra si mesmo, mas sim a ausência ampla e irresponsável de políticas que, ao invés de proteger, apoiar e auxiliar financeiramente as pessoas, se aproveitam dessas vulnerabilidades para precarizar ainda mais a vida de amplas parcelas da sociedade brasileira. Não vamos tolerar a continuidade dessas ações de desrespeito que se aproveitam da dor e do sofrimento das pessoas.
BASTA!
Rio de Janeiro, 17 de março de 2021
Assinam este documento:
Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO
Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores