Não somos todos iguais. Como dizia a minha avó, reproduzindo a ironia do dito popular, “iguais só no branco dos olhos”. Apesar de eu e você compartilharmos tanto em comum e podermos coincidir em mais do que apenas um fundo de olho, a complexidade que representamos extrapola os limites do corpo e se manifesta em nossas relações mais próximas. Ela também é refletida nos grupos dos quais participamos e aos quais decidimos nos juntar por afinidade e opção própria ao longo da vida.
Minha percepção me faz crer que o mundo está mais receptivo às diferenças. Antes, aqueles que estavam fora do padrão eram excluídos ou vistos com olhares de estranhamento. Mas cada vez mais refletimos sobre o valor de ser quem somos. E quem carrega a diferença em seu corpo ou em suas escolhas pessoais comunica, hoje, autenticidade e liberdade de ser.
Alguns dizem que “o mundo está ficando chato” por causa do politicamente correto. Mas esse processo pode revelar a construção de um lugar melhor para comportar as diferenças, trabalhando nossos preconceitos e aumentando o sentimento de tolerância.
Vale saber, no entanto, que ser diferente não é fácil. Exige coragem. O movimento passa por várias etapas de aceitação – pessoal, familiar e social – até atingir graus em que a distinção possa ser valorizada e se transformar em identidade e cultura passíveis de orgulho e amor.
Um mundo que nos aceite
Tenho anotada comigo desde os tempos de faculdade uma frase de George Devereux , psicanalista e etnólogo húngaro-francês. Ela diz, essencialmente, que podemos ser considerados iguais apenas porque somos diferentes. “Ser cidadão de um mundo que conhece a diferença e respeita aqueles que são tributários de culturas e identidades que não são as minhas, assumindo que não há cultura e identidade melhor ou pior”, comenta Claudio Bertolli Filho, livre-docente na área de antropologia da Unesp.
Mas nem sempre foi assim. A noção de que é tão digno e complexo ser alguém que incorpora os valores de qualquer sociedade, de qualquer lugar, foi construída pouco a pouco, “o que inspirou grupos de países periféricos a enfatizar a diferença, rebatendo a ideia de que só havia uma maneira ‘certa’ de ser humano, aquela cunhada na Europa Ocidental e nos Estados Unidos até pelo menos o final da Segunda Guerra Mundial”, explica Claudio.
Esse movimento alcançou também o interior de cada nação, desencadeando a luta das minorias em consolidar sua identidade com a afirmação de grupos sociais, religiões, etnias, orientações sexuais, entre outros. Você certamente conhece histórias de pessoas próximas que dedicaram litros extras de lágrima, suor ou sangue para se firmar mundo afora, além de relatos violentos, estampados com bastante frequência nos jornais diários.
Ainda numa perspectiva histórica, com a globalização e a chegada das novas tecnologias, a partir da década de 1980, “acreditava-se que, com a comunicação de informações e o pretenso fim das barreiras territoriais e ideológicas, todos compartilhariam de uma mesma cultura – era o início de um novo momento histórico-cultural denominado pós-modernidade, e as elites dos países hegemônicos articularam um discurso que fazia apologia a um novo personagem, o ‘homem universal’”, comenta o professor.
Contudo, apesar do entusiasmo inicial, logo se percebeu, diz ele, que, se efetivamente isso ocorresse, ameaçaria as identidades nacionais e locais. Isso porque “o que caracteriza a condição humana é a capacidade de ser diferente e a necessidade de consagrar uma identidade particular tanto no plano coletivo quanto no individual”. Ainda que cada um encontre seus pares a partir da afirmação e do reconhecimento de semelhanças, as particularidades únicas de cada um prevalecerão, significando a garantia da nossa existência na mais irrestrita totalidade em moldes exclusivos para cada um.
Nossa propensão de buscar formas de lidar com a própria diferença enquanto queremos garantir aceitação social também pode ser observada nos espaços virtuais, cujo papel é ambíguo, segundo Claudio: “Embora ofereçam informações sobre a diversidade e permitam que grupos de várias culturas dialoguem, por outra via se constituem em espaço para a discriminação e estigmatização na medida em que ainda temos grande dificuldade em aceitar o outro”.
Uma casa que nos acolha
A percepção da diferença aparece já nas primeiras vivências da infância. Nessa fase, revela-se a importância de existir uma organização familiar, baseada em compreensão e aceitação, que garanta aos filhos a possibilidade de firmar-se em sua individualidade. As funções de pais e mães envolvem administrar as diferenças, seja as relacionadas à personalidade e ao comportamento (que expõem preferências e interesses), seja as diferenças que destoam dos padrões pré-estabelecidos sobre o processo de desenvolvimento da criança – apesar de cada um ter o próprio ritmo para atividades como começar a andar e falar, a aprender a ler e escrever… E há também a possibilidade de encontrar multiplicidades extremas, como as narradas no livro Longe da Árvore (Companhia das Letras), de Andrew Solomon, quando os pais precisam enfrentar o embate entre procurar a cura para uma diferença – onde surdos, autistas ou transgêneros são vistos como doentes, por exemplo – ou aceitá-la e reconhecer nela uma identidade e uma cultura cheia de significados.
Como filha do meio, sempre tive aversão a comparações. Isso contribuiu para que, em qualquer relação, eu procure um cantinho para chamar de meu e espalhe por aí que cada um é cada um. Segundo Leticia Costa Godinho Pergher, especialista em psicologia clínica, envolvida com estudos em antropologia urbana e psicanálise, “a busca por algum grau de diferenciação pode vir do desejo de sermos admirados em nossa singularidade, composta de nossos recursos e nossas dificuldades”.
Ainda que com ressalvas, a dessemelhança ganha respaldo na conectividade, que permite o encontro e a comunicação de pessoas que permeiam grupos variados. Assim, tem gente que se reconhece por estar à margem dos modelos estéticos vigentes, ou por pensar e agir fora do roteiro-padrão. Iniciativas assim prestam um favor ao reforçar, por exemplo, que beleza é diversidade, nas formas mais plurais possíveis. Leticia acredita que “quando temos segurança de que nossas capacidades estão preservadas dentro da gente, dependemos menos de rótulos e outros artefatos externos para nos sentirmos bem e inseridos”, mas que o bom uso das redes é justamente encontrar pessoas com estratégias de viver a vida parecidas com as nossas, o que “alivia angústias, ajuda na sensação de pertencimento e nos acalma em nossa solidão”. Por outro lado, o mau uso delas estaria no fato de se fechar nessa similaridade e não se abrir mais ao diferente, o que definitivamente estaciona o desenvolvimento.
O discurso da intolerância e do preconceito é revelado justamente “quando não aceitamos o outro e criamos situações em uma aparente mobilização de suprimi-lo e se impor sobre ele para, em última instância, eliminar o que sinto e me incomoda”. Leticia comenta que isso acontece porque muitas vezes “não estamos assim tão seguros com quem somos, nos sentimos atacados e ameaçados pela diferença do outro, pela audácia dele em fazer algo que eu não fiz, levar uma vida que eu não levo, de oferecer respostas diversas e apresentar outros jeitos de lidar com um problema, e até de participar de histórias interessantes que não as minhas”.
A educação aparece então como um recurso à “domesticação” daquilo que sentimos. “É muito mais rico para a própria pessoa, e sem dúvida para a sociedade, se ela consegue tolerar o que sente, entendendo que é um problema dela quando manifesta esses sentimentos e é tarefa da vida lidar com o que sentimos diferenciando da ação. Isto é, eu sinto, mas não preciso ferir o outro com isso.” Para ela, uma das maiores vantagens de conservar e difundir a diversidade como um valor é conseguir tolerar a diferença e encará-la como simplesmente diferente, o que permite que as pessoas possam aprender umas com as outras e sejam estimuladas a seguir na permanente busca de ser alguém melhor.
Que você seja
Em um grande painel democrático, o artista paulista Guilherme Kramer cria poesia urbana ao arranjar lado a lado os rostos que acumula das ruas, da memória ou da imaginação. Apesar de o todo aparentar uma grande massa em preto e branco, cada rosto é único e está em constante diálogo com os demais, revelando detalhes da condição do indivíduo em relação ao coletivo e destacando a diversidade. “Todos convivem no caos expressivo de uma megalópole e compartilham suas disparidades, centímetro a centímetro”, reflete. “Quantas narrativas existem em um único quarteirão? O metrô da capital paulista é uma fração do mundo. Sinto um misto de desordem interna e orgulho por viver em uma cidade com tantos contrastes. Uma diversidade que vai se misturando no contato olho a olho com desconhecidos”, diz ele. “Somos todos feitos de histórias, e o entrelaçar delas nos faz únicos e infinitos”, arremata Kramer. O patrimônio comum do qual todos somos herdeiros é a diversidade humana – a possibilidade da coexistência de combinações múltiplas produzindo resultados tão surpreendentemente variados de novas formas de ser e de estar no mundo.
Embora estejamos o tempo todo expostos a juízos de valor, ou por isso mesmo, é tempo de ousar acreditar na autenticidade, ter a coragem de aceitar, e mostrar quem somos com sinceridade e leveza. Perceber, enfim, que nossa unicidade reside justamente na diferença.
Laís Barros Martins – Vida Simples