A história bíblica da saída do Egito contém o relato de dois relatos. O relato de Moisés, que vivendo na opulência da corte egípcia não suporta ver seu povo maltratado e o conduz à liberdade; e o relato do faraó, um déspota incapaz de mudar de rumo. O Faraó, um tirano que nada aprende da catástrofe, que ele mesmo alimenta, e Moisés, que usa a catástrofe para liderar seu povo para uma vida melhor.
Frente as pragas que assolavam o seu país, e que acabariam se os israelitas fossem liberados, o faraó não aceitava que sua onipotência fosse questionada, que um poder maior o exigisse a mudar de conduta. Um faraó insensível, que preferia ver seu povo morrer a reconhecer seus limites. Um faraó cegado pelo poder, que se alimentava de ódio, que não sabia o que é a compaixão.
As pragas, pelo sofrimento que produzem, nunca devem ser celebradas, mas sim lembradas, pois nos ensinam que a vida está composta por incertezas, que o inesperado está sempre à espreita, que sempre estaremos enfrentando o desconhecido. Perante elas, dependeremos do esforço de todos, da solidariedade e do apoio mútuo e, quando possível, de líderes preocupados com o bem comum, que transmitem esperança apesar da difícil travessia.
Festejamos Pessach para recordar que a liberdade só é possível se formos solidários e nos indignamos com o sofrimento dos outros.
Festejamos Pessach para lembrar que fomos escravos, e por isso devemos sempre confrontar toda forma de opressão.
Festejamos Pessach para lembrar de nunca nos submetermos aos faraós, grandes e pequenos, e nem, sobretudo, de virarmos um faraó.
O nosso faraó interno, que não enxerga nem escuta, que é ignorante porque pensa que sabe tudo, e substitui o poder do sentimento pelo sentimento do poder.
O faraó que habita dentro de nós, em nossa vontade de que os outros se submetam a nossos desejos, em nossa dificuldade de conviver com o diferente.
O faraó que humilha, que ofende, que desrespeita aos mais fracos, que circula entre a indiferença ao sofrimento e o ódio a todos os que o incomodam por não aceitarem se submeter a sua vontade.
Porque viemos de longe, lemos os textos da tradição à luz da experiência e sabedoria acumulada.
Porque sabemos que os textos são sagrados quando servem para santificar a vida.
Porque quem foi perseguido não pode ser cumplice de nenhum tipo de perseguição, nem quem foi estigmatizado pode aceitar que alguém o seja.
Porque ser livre exige conviver com crenças diferentes, dissonantes das nossas, aceitando que todo problema tem várias soluções, e toda pergunta várias respostas.
Porque o passado nos traz ensinamentos para o presente, celebramos Pessach e agradecemos:
Shehechyanu, ve´quimanu ve’higuianu lazman haze.
Que vivemos, que existimos, que chegamos a este momento.
Bernardo Sorj
Sociólogo brasileiro, professor titular aposentado de Sociologia na UFRJ, diretor do Centro Edelstein e Plataforma Democrática.