Ma Nishtanta Halaila haze

O que mudou nesta noite

Quando o anjo da morte se abateu sobre o Egito, os hebreus receberam a ordem de se refugiar nas suas casas, pois quem saísse morreria, e quem ficasse no seu lar partiria no dia seguinte em direção à liberdade.

Em Pessach festejamos o início de uma travessia em direção à liberdade. Liberdade sempre relativa, fugidia, impossível de definir, mas que redescobrimos cada vez que nos enfrentamos com situações de opressão.

Não vivemos em tempos bíblicos, e nossa travessia depois da epidemia será outra. Não haverá desígnio divino nem a liderança de Moisés para nos guiar; e não será uma lembrança de povos em confronto, mas a do conjunto da humanidade enfrentando um inimigo comum. E não será somente a travessia do povo judeu, deverá ser a travessia da humanidade.

O “milagre do coronavírus” é que, pela primeira vez na história humana em geral, e do povo judeu em particular, cada morte, de qualquer pessoa, em qualquer lugar no mundo, nos coloca diante de um espelho no qual vemos nossos rostos e de seres queridos. Não importa onde, religião raça ou posição social, todos nos sentimos parte da mesma comunidade humanidade e a mesma batalha, em cuja frente não estão exércitos, e sim médicos, enfermeiros e cientistas. Hoje a noite de Pessach é diferente de todas as outras noites de Pessach.

A segunda guerra mundial levou à declaração dos direitos humanos. Podemos lamentar que a humanidade precise de grandes tragédias para avançar. Assim foi e assim será. Para que a atual tragédia não tenha sido em vão, cada um deverá se perguntar o que aprendeu nos tempos do coronavírus.

Todos nós queremos voltar à nossa vida normal. Alguns, esperemos que não muitos, como o Faraó do Egito, não aceitaram que sua omnipotência seja questionada. Outros, cada um à sua maneira, usará a oportunidade para mudar sua conduta, na sua vida pessoal e coletiva.

Cada um terá sua lista de mudanças a fazer. Só posso propor a minha, certamente limitada, que deverá ser enriquecida nas mais diversas formas por cada um, na vida pessoal e na ação coletiva.

Vivemos numa sociedade que não nos permite distinguir entre o essencial e o secundário. Hoje descobrimos que poucas coisas são essências para viver, e que nossa principal preocupação é com o bem-estar básico de nossos seres queridos, e que ele depende do bem-estar do conjunto da sociedade nacional e da humanidade.

Que, como aprenderam nossos antepassados, o humor é fundamental para manter nossa normalidade. A capacidade de rir de nós mesmos e da situação em que nos encontramos é a melhor defesa para manter distância de nossos medos, e não cair na depressão e na histeria. Só os fanáticos, que se alimentam de ódio, não suportam que as pessoas possam olhar para a vida com um pouco de ironia e um sorriso.

O estado é imprescindível para proteger seus cidadãos. Sem estado não há sociedade. Certamente devemos melhorar cada vez mais a qualidade de nossas instituições democrática, mas a ilusão individualista que se orienta pelo princípio de cada um por si e o mercado por todos não só ofende tudo o que as religiões e o humanismo iluminista nos ensinaram, como empurra a sociedade para o abismo.

Fica claro que fora da ciência existem crenças espirituais que devem ser respeitadas, mas em temas mundanos a alternativa à ciência é o charlatanismo. Não que cientistas não possam errar. Eles erram, inclusive porque o erro é parte constitutiva da pesquisa cientifica. Não que devamos tomar a palavra de cada cientista como sendo verdadeira, inclusive porque na ciência não há dogmas, e a divergência é o coração da vida acadêmica. Mas é com base nela e a partir dela que podemos tomar decisões.

Neste momento difícil quase ninguém procura informação fora dos meios de comunicação confiáveis. A indústria de fake news, que dissemina desinformação e ódio no momento está moribunda. Em situações de risco real evitamos ouvir mentiras que têm por objetivo alimentar preconceitos, ou ler mensagens de ódio, porque sentimos que estamos todos juntos no mesmo barco, e devemos ser solidários e amorosos. Mas as fake news, assim que puderem, voltarão a atacar. Porque a agenda política de quem as produz se sustenta na demonização das elites cientificas e culturais e dos meios de informação, no desrespeito ao debate informado de ideias e à diversidade de opiniões. Tomara que deixemos de divulgar mensagens do mal.

Se estes tempos difíceis, com seu rasto de angustia e dor, nos ajudarem a refletir e a mudar na direção de sermos melhores, como indivíduos e sociedade, poderemos celebrar, no lugar de procurar esquecer, que fomos parte de uma experiência única, que produziu muito sofrimento, mas que também permitiu sermos parte de uma nova travessia, de todos os seres humanos, que terá início no dia que possamos sair de nossas casas.

Porque aprendemos da experiência em tempos de epidemia, devemos agradecer:

Shehechyanu, ve´quimanau ve’higuianu lazman haze.

Que vivemos, que existimos, que chegamos a este momento.

Bernardo Sorj
Sociólogo brasileiro, professor titular aposentado de Sociologia na UFRJ, diretor do Centro Edelstein e Plataforma Democrática.