Cada ano festejamos Pessach porque a liberdade, para os indivíduos e para a sociedade, é sempre uma travessia, nunca um ponto de chegada, e ela só é possível porque se alimenta do exemplo e das lutas das gerações passadas.
Pessach é um momento de reflexão sobre o que nos faz escravos, permitindo que a opressão se instale no nosso interior e nas nossas relações. Por isto festejar a liberdade exige refletir sobre a servidão, sobre o Faraó que cada um leva dentro de si.
O Faraó que só percebe a si mesmo.
O Faraó que deseja que os outros o obedeçam.
O Faraó que não aceita que cada pessoa é diferente.
O Faraó que julga antes de compreender.
O Faraó que divide tudo em certo e errado.
O Faraó que fala para não ouvir.
O Faraó que teme ideias diferentes as suas.
O Faraó que ri dos outros sem ser capaz de rir de si mesmo.
O Faraó que confunde solidez com rigidez.
O Faraó que critica e não aceita ser criticado
Pessach nos lembra de que o poder material, econômico ou político, não deve ser confundido com o poder de ser internamente livre. Porque a liberdade não se compra nem se impõe, só pode ser construída por cada um e na convivência, inspirando-se em exemplos, mas seguindo caminhos que são sempre singulares. Por isso:
Só a liberdade nos leva a valorizar perguntas que questionam nossas certezas e a duvidar de respostas que confirmam nossas crenças.
Só a liberdade nos permite amar nossos seres queridos sem querer transforma-los em espelhos de nós mesmos.
Só a liberdade nos permite levar a vida a sério, sem nunca deixar de brincar.
Só a liberdade nos permite aprender coisas diferentes que questionam nossas crenças.
Só a liberdade nos permite entender nossas mudanças e das pessoas que nos circundam.
Só a liberdade nos ensina que a vida nunca se reduz ou pode ser contida em leis e conceitos aparentemente rigorosos.
Só a liberdade nos dá o sentido da ironia e do humor.
Só a liberdade nos permite entender que toda fronteira usada para classificar os outros é precária e que nunca deve ser transformada numa forma de desclassificar.
Só a liberdade permite que a tradição seja uma fonte de sabedoria e não uma camisa de força.
A afirmação da liberdade é um caminho que exige rompimentos e distanciamentos de um mundo conhecido e aparentemente seguro. Mas nada pode eliminar a angustia nem as incertezas. Ou nos refugiamos na repetição mecânica e em crenças cegas que sufocam a curiosidade, fogem do desconhecido e temem o que está fora de nosso controle, ou as transformamos numa energia que nos impele a descobrimentos e que nos faz crescer, transformando a vida num processo de aprendizagem permanente.
Só podemos lutar contra a servidão se enfrentamos o opressor e o oprimido que cada um de nos carrega. Porque a escravidão individual é produzida por traumas que nos deixam inseguros e por medos que nos paralisam e nos transformam em pessoas rígidas e oprimidas.
Um oprimido que se esconde dele mesmo procurando ser igual ao resto.
Um oprimido que transforma, por insegurança, o amor em possessão.
Um oprimido que odeia o que não controla e o que não se ajusta a sua vontade.
Um oprimido que foge da mudança, no lugar de se enriquecer com ela.
Um oprimido que teme o futuro e a passagem do tempo no lugar de vivê-lo intensamente.
Um oprimido que inferioriza os outros para se sentir superior.
Um oprimido que se refugia em grupos e comunidades em torno das quais cria muralhas que desumanizam os que se encontram fora.
A liberdade pessoal só pode ser plenamente realizada em comunidades que permitem a livre expressão de cada indivíduo. Devemos, portanto, lutar contra toda forma de opressão política e social. Porque o autoritarismo se alimenta do ódio, estigmatiza quem discorda, transforma o opositor em inimigo e os indivíduos em membros de manadas. Lembrando sempre que não há comunidade onde não existe justiça social, pois a pobreza e a opressão geram sofrimento, exclusão e desespero.
Porque aspiramos a ser livres, mas nunca nos desprenderemos totalmente dos desejos de opressão, lembramos as grandezas, nem por isso destituídas por vezes de fraquezas, de nossos antepassados. A todos eles, e a todas as pessoas justas de todos os povos e culturas, que fizeram possível que hoje possamos brindar á vida e a liberdade:
Shehechyanu, ve´quimanau ve’higuyanu lazman haze
Que vivemos, que existimos, que chegamos, a este momento.
Bernardo Sorj
Sociólogo brasileiro, professor titular aposentado de Sociologia na UFRJ, diretor do Centro Edelstein e Plataforma Democrática.