Para quem conheceu de perto e teve a graça de conviver com Pedro Casaldáliga, não será fácil ver o mundo sem ele. Afinal, desde que, como padre ainda jovem, chegou em São Félix do Araguaia, em outubro de 1971, penso que nunca ninguém o encontrou sem, de alguma forma, ficar marcado. No contato com ele, as pessoas abertas ao apelo divino da justiça e da paz receberam sempre alento e força. Aqueles que, por interesses pessoais ou por alienação da vida, não aceitaram o anúncio do reino, o rejeitaram. Alguns o odiavam. Diante dele e de sua palavra e suas posturas proféticas, era quase impossível ficar indiferente.

A quem, na busca espiritual, teve a graça de encontrá-lo ao menos uma vez e mais ainda para muitos que tiveram o privilégio de conviver com ele ou acompanhá-lo na missão, Pedro sempre testemunhou o amor divino como força transformadora das pessoas e da sociedade.

Neste momento de sua Páscoa definitiva, muitos irmãos e irmãs lembram coisas bonitas que viveram com ele. Outros tecerão elogios a seus poemas e a seus escritos que “sempre dão o que pensar”, como ele intitulou um dos volumes de seu diário nos anos 1980.

Pode ser que, depois de alguns dias, eu consiga escrever mais alguma coisa. Hoje, a emoção ainda não me deixa escrever, sem misturar as letras com as lágrimas da saudade, da gratidão imensa e da ação de graças a Deus por ter, durante anos decisivos da minha vida, podido ter nele um irmão mais velho, um conselheiro espiritual e um mestre de vida.

Junto com dom Tomás, foi ele que fez a mim e a mais dois irmãos beneditinos retomar o projeto de um mosteiro ecumênico, inserido no meio dos pobres quando pensávamos que, na Igreja Católica, não conseguiríamos. De fato, no começo dos anos 2000, aquele projeto tinha mesmo se tornado bem mais difícil. No entanto, em 1984, Pedro e Tomás nos aconselharam a recomeçar de forma nova o estilo de vida monástica que os monges franceses começaram em 1961, em Curitiba. A partir dali, o mosteiro da Anunciação do Senhor foi um sinal ecumênico e pascal para as Igrejas do Brasil e para os movimentos sociais. Como gostaria de encontrar o poema de Pedro sobre os monges de pés descalços cujo mosteiro é o mundo.

Neste momento no qual entregamos a Deus a sua vida consagrada e plantamos o seu corpo na mãe Terra como semente de ressurreição, é importante tentarmos descobrir para nós e para as comunidades a herança espiritual que Pedro nos deixou:

1 – Pedro nos ensinou e nos propôs a viver a fé, descentrados de nós mesmos e da própria Igreja. Ele vivia uma adesão contínua e total a Jesus Ressuscitado no estilo de uma Santa Teresa de Ávila, mas manifestando-o presente nas pessoas mais pobres, na opção pela justiça e pela libertação de todos(as) e na comunhão com a Terra, as águas e todo o universo. Pedro expressava isso ao dizer: Absoluto mesmo só Deus e a fome do povo.

2 – Desde o começo do seu ministério, Pedro insistia: Igreja é sempre e principalmente Igreja local. Ah, se Pedro pudesse ter estado no Sínodo da Amazônia e nos revelado como já nos anos 1970, ele propunha “amazonizar” a Igreja. E para ele, Igreja de Jesus era martírio. Ele nos deixou uma profunda espiritualidade martirial. A missão não é querer transformar ninguém em cristão. É semear ressurreição nas vidas nossas e das pessoas.

3 – Pedro nos passou o amor apaixonado aos povos indígenas e este amor se manifestava em todo o seu estilo de vida, até o fato de querer ser enterrado no cemitério Karajá às margens do Araguaia.

Não tenho como neste momento não retomar com carinho filial um dos seus poemas que fala da morte, mas também da ressurreição como rota de vida:

Eu morrerei de pé como as árvores
Me matarão de pé
O sol, como testemunha maior, porá seu lacre
sobre meu corpo duplamente ungido.

E os rios e o mar
serão caminho
de todos meus desejos,
enquanto a selva amada sacudirá, de júbilo, suas cúpulas.

Eu direi a minhas palavras:
– Não mentia ao gritar-vos.
Deus dirá a meus amigos:
– Certifico
que viveu com vocês esperando este dia.

De golpe, com a morte,
minha vida se fará verdade.
Por fim terei amado!

 

Marcelo Barros
Monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adora os movimentos populares e especialmente o MST.