Neste ano, novamente, as comunidades cristãs terão de celebrar a Semana Santa ainda sob o peso da pandemia que, no Brasil, se torna cada vez mais ameaçadora. A orientação justa é celebrar em casa e nos unirmos à nossa comunidade por televisão ou internet. É pena não podermos celebrar o memorial da ceia de Jesus, da sua cruz e da sua ressurreição na comunhão concreta dos irmãos e irmãs de fé. No entanto, nossa reflexão tem de ir além das contingências e a melhor celebração desta Páscoa será a resistência e o testemunho de solidariedade às pessoas mais fragilizadas.
Neste ano de 2021, mais uma vez a celebração cristã da Páscoa coincide com a celebração da Peshá judaica. Em todas as sinagogas do mundo, a festa da Páscoa começou no sábado 27 de março e vai até o próximo sábado. Esta festa que o Judaísmo chama “a festa da nossa libertação” lembra a todo ser humano sua vocação para a liberdade.
Nestes dias que a tradição cristã chama de Semana Santa, as Igrejas recordam a última semana de Jesus em Jerusalém para celebrar a Páscoa. Jesus celebrou a Páscoa como todo judeu praticante. No entanto, em sua época, a Páscoa proposta pelo livro do Êxodo tinha se transformado em uma grande festa comercial, centralizada no templo e para fortalecer o poder e a riqueza dos sacerdotes. Por isso, Jesus quis dar a Páscoa um novo sentido que retomasse a espiritualidade libertadora do Êxodo e, ao mesmo tempo, a estendesse a toda a humanidade.
Imbuídos deste espírito, nesta quinta-feira à noite, iniciaremos a celebração cristã da Páscoa recordando a última Ceia de Jesus, profecia de partilha e doação de vida, apelo de unidade para toda a humanidade. Na sexta feira santa, celebramos a Páscoa da Cruz. Olhamos a paixão de Jesus, tomando formas novas nas cruzes de todos os oprimidos e oprimidas deste mundo e na dor da nossa mãe Terra. Na noite do sábado e madrugada do domingo, mesmo em casa e, portanto, de forma doméstica e laical, celebremos a vigília, mãe de todas as vigílias da Igreja.
Reunir-nos, mesmo virtualmente, para celebrar esta vigília, na amizade do grupo do qual participamos será como se ajudássemos a madrugada a nascer e despertássemos o Sol da Justiça para recriar o mundo e renovar nosso ser engravidando-o de ressurreição.
A celebração desta Semana Santa nos convida a olharmos para fora das Igrejas a tragédia da cruz que continua a ocorrer a cada dia, ao lado da nossa porta. Embora toda dor humana mereça solidariedade, consideramos como prolongamento da cruz de Jesus todo sofrimento físico ou psicológico, decorrente da missão para transformar o mundo. Também as angústias e dores que decorrem de uma sociedade que perdeu o coração.
Assim como um artista esculpe ou desenha uma cruz na parede, podemos ver levantados na cruz, povos inteiros aos quais desde os anos 1980, em El Salvador, o mártir Ignacio Ellacuría chamava de “povos crucificados”. Em cada país da América Latina se contam aos milhares as vítimas do sistema que, para manter o privilégio de uma pequena elite escravagista, provoca dor e morte em milhões de seres humanos. E esta dor e morte de cruz se propaga como pandemia. Em muitos países da América Latina, a cada dia, milhares de pessoas desaparecem, vítimas das milícias policiais e dos grupos de narcotráfico. Em todos os países, mulheres são vítimas do feminicídio e da violência machista. Na maior parte do continente, povos originários têm sua sobrevivência física e suas culturas ameaçadas. No Brasil, aumenta diariamente o número de jovens negros assassinados nas periferias de nossas cidades. Esses são apenas alguns elementos da violência nossa de cada dia.
Se celebrássemos a memória da cruz de Jesus indiferentes a essas crucificações atuais, nossa celebração não passaria de um cínico exercício de hipocrisia religiosa. Em meio ao agravamento desta pandemia, sentindo diariamente a fragilidade da vida, esta Páscoa deve ser profecia que nos dê força de resistência e clareza sobre a nossa missão na realidade atual.
Antigamente, éramos educados a compreender a morte e a ressurreição de Jesus como se fosse um drama em dois atos. Ele foi morto e, no terceiro dia, Deus lhe deu uma vida nova. A espiritualidade libertadora nos ensina que nossa fé será pascal se conseguirmos ver na própria cruz e mesmo na morte do Cristo e do povo, os sinais da força divina que vence a morte e aponta para a ressurreição como vitória da vida.
Marcelo Barros
Monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adora os movimentos populares e especialmente o MST.