Uma parábola que está na Bíblia, no Evangelho de Marcos, nos coloca em contato com a situação dos sem-terra da atualidade e dos Sem Terra* do primeiro século na Palestina colônia do Império Romano. Ei-la:
“Escutem. Um homem saiu para semear. Enquanto semeava, uma parte caiu à beira do caminho; os passarinhos foram e comeram tudo. Outra parte caiu em terreno pedregoso, onde não havia muita terra; brotou logo, porque a terra não era profunda. Porém, quando saiu o sol, os brotos se queimaram e secaram, porque não tinham raiz. Outra parte caiu no meio dos espinhos. Os espinhos cresceram, a sufocaram e ela não deu fruto. Outra parte caiu em terra boa e deu fruto, brotando e crescendo; rendeu trinta, sessenta e até cem por um. E Jesus dizia: Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!” (Marcos 4,3-9).
É o trabalho dos camponeses que está refletido no enredo da parábola do semeador! Trabalho duro, de sol a sol, dificultado por conta da política praticada pelo poder do Império Romano e pelos seus representantes na Palestina. A situação no campo se tornou de extrema penúria. Havia grandes extensões de terra nas mãos de poucos, particularmente romanos ou seus representantes. As aristocracias das cidades de Tiberíades e Jerusalém eram também proprietárias de muita terra, em geral as mais férteis. A produção visava particularmente à exportação.
A parábola do semeador fala de um trabalhador camponês que resiste e não se sujeita a cumprir os papéis subalternos e submissos que o sistema imperial lhe impõe. Seu trabalho se dá no lançar sementes à beira do caminho, na pedra, entre espinhos e, finalmente, em terra boa.
A parábola chama a atenção para as duras condições de trabalho dos camponeses pobres explorados e expropriados e nos convoca a perceber como é grave a realidade que é narrada! Aos camponeses que não baixam a cabeça só resta a beira da estrada, o terreno com pedras ou cheio de espinhos, e isso se sobrar.
A parábola nos leva a refletir sobre a injustiça da situação concreta vivenciada pelo camponês, mas aponta também para outro horizonte: o da alegria da fartura, o da produção abundante. Na verdade, as três primeiras etapas do trabalho do camponês aparecem em um crescente, apontando para a semeadura em terra boa, com o resultado esperado. A persistência do trabalhador terá sua recompensa.
Além disso, deve-se notar que a parábola não declara quem é o destinatário da produção ou se outra pessoa que não o trabalhador camponês se aposse dela. Mas é inevitável pensar sobre isso pois, é sabido que os impostos injustos acabariam por açambarcar [monopolizar] boa parte de sua produção.
No horizonte do texto do evangelho de Marcos 4,3-9, da década de 70 do primeiro século da Era Cristã, o destinatário da produção não pode ser senão o semeador quem trabalha a terra! Essa parábola profética se atreve a propor a utopia da terra libertada: sem donos, sem quem se aposse do trabalho de outros, sem que um plante para outro colher. Utopia narrada poeticamente no livro do profeta Isaías:
“Os homens construirão casas e as habitarão, plantarão videiras e comerão os seus frutos. Já não construirão para que outro habite a sua casa, não plantarão para que outro coma o fruto” (Isaías 65,21-22a).
No Evangelho de Lucas há duas narrativas de envio de discípulos: Lucas 10,1-12, em que Jesus sugere aos discípulos irem para a missão despojados e desarmados, e Lucas 22,35-38, que trata da hora do combate, da luta, do enfrentamento. Na missão de construção de uma sociedade justa e solidária, ao tomar partido ao lado dos superexplorados e “dar nomes aos bois”, explicita-se as divisões e desigualdades sociais existentes na sociedade capitalista.
Os incomodados tendem naturalmente a querer silenciar aqueles/as que os estão incomodando. Nesta hora de perseguições exige-se resistência. Por isso, o evangelho de Lucas propõe aos discípulos para o exercício da missão “pegar bolsa e sacola, uma espada – duas no máximo” (Lucas 22,36-38). No artigo Seguir Jesus, desafio que exige compromisso, ponderamos:
“Resistir não é violência, é legítima defesa. Diante de qualquer tirania e de um Estado violentador, vassalo do sistema capitalista que sempre tritura vidas e pratica injustiças, é dever das pessoas resistir diante das opressões perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de Jesus”.
Lucas, em Lc 22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política e religiosa. Em uma sociedade desigual, esse é “outro caminho” a ser seguido por nós, discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.
Os quatro evangelhos da Bíblia** relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, indignado, ocupou o templo de Jerusalém, lugar sagrado. O nazareno fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio’ (João 2,16). O templo era espaço sagrado, lugar do culto e de se humanizar. O templo era uma instituição transformada em uma espécie de Banco Central do país + bancos + bolsa de valores.
Atualmente, o território brasileiro com todos seus biomas e com todos os povos são nosso “templo” que está sendo violentado pelos novos ‘vendilhões do templo’, os fascistas e os capitalistas. Feliz quem, possuído por uma ira santa, participa da luta para expulsar os atuais mercadores da vida e que degradam as condições objetivas que a viabilizam.
Há que se semear na própria terra e não em terra alheia ou para que usufrua o patrão. O desafio é ser discípulo(a) crítico e criativo e lutar de forma coletiva para expulsar os atuais “vendilhões do templo”, que insistem em usurpar todas as formas de vida existentes em nosso país: o povo, os biomas e toda a biodiversidade que ela congrega. Tudo isso para que a vida, o que há de mais sagrado, e todas as condições para sua existência sejam garantidas.
Gilvander Moreira, Dom Total