Quem me dera ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto como o mais importante
Mas nos deram espelhos E vimos um mundo doente (Renato Russo).
Um mundo doente e agravado pela pandemia. O sistema econômico e muitas decisões políticas acrescentaram a crise sanitária às muitas outras existentes: econômica, política, ambiental, social e, acrescento, crise da fé. “Tudo está interligado” (Papa Francisco).
Para muitas pessoas, a pandemia transformou distanciamento em solidariedade e amor fraterno. Aqueles que amam verdadeiramente se confinaram para proteger a família, amigos, a comunidade. A Igreja, apesar de algumas críticas, não negligenciou a pandemia. Pelo bem comum, fechou as portas. Portas que muitas vezes já estavam fechadas em práticas e fórmulas ultrapassadas, clericalistas e repetitivas.
Com gestos e palavras, Francisco tem sido uma luz na construção de um novo caminho: “O clericalismo é como uma tentação perversa que serpenteia cotidianamente em nosso meio e nos faz pensar sempre em um Deus que fala só com alguns, enquanto coloca os outros para apenas ouvir e executar”.
Diversas foram as práticas litúrgicas adotadas durante a pandemia, digitais, online, virtuais, rádios e TV. Pouco a pouco, tais práticas cedem espaço à normalidade, ou seja, a vivência da celebração e do sacramento compartilhado. “A Liturgia é o cimo para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte donde emana toda a sua força… reúnam-se em assembleia, louvem a Deus na Igreja, participem no sacrifício e comam a Ceia do Senhor” (Sacrosanctum Concilium,10). A participação dos batizados na liturgia se efetiva não só nas orações, mas também na mesa eucarística, e assim, oferecem sua vida a Deus (cf. Sacrosanctum Concilium,48).
Durante a pandemia muitas foram as celebrações individuais, contudo, não menos importantes. “Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo” (Mateus 6,6). Muitos descobriram que são capazes de viver por algum tempo sem os sacramentos, mas não sem celebrar em comunidade. As liturgias natalinas, ainda vivas na memória, nos provocaram: qual criança enxergo na manjedoura? Que presentes sou capaz de levar ao menino? Estou aberto à experiência da Palavra que se faz Carne e que celebro na Eucaristia? O que é oferecer a vida a Deus?
O culto espiritual, Palavra e Eucaristia, deve nos humanizar. Exige compromisso e discernimento: “não vos conformeis com o mundo presente, mas sede transformados pela renovação da vossa inteligência para discernirdes a vontade de Deus: o que é bom, o que é lhe é agradável, o que é perfeito” (Rom 12,2).
A liturgia nos faz entender que não estamos sós, somos membros de um mesmo corpo, cada um com a importância do dom que lhe foi dado. E superar a cultura do consumismo individualista que nos leva à indiferença por aqueles que sofrem. A liturgia nos move a concretizar em gestos a nossa comunhão com o Senhor e com os irmãos: “A palavra solidariedade significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns (Evangelii gaudium, 188).
Oferecer a vida em serviço de amor é sair mais humano das liturgias, independente da forma da celebração. Levar a Palavra no coração, e transformá-la em gestos concretos de solidariedade e justiça. Lutar contra o sofrimento e contra todo tipo de exploração humana. Mais fundamental que estar na Igreja é ser Igreja no mundo.
A liturgia inspira futuros diferentes, uma Igreja mais fiel à Jesus Cristo, desprovida de poder, discriminação e ostentação. Uma Igreja que acolhe e vai ao encontro dos abandonados. “Sair em direção dos afastados, dos excluídos (…) sair em direção às periferias humanas” (Evangelii gaudium, 46).
Que a liturgia seja vivida nas ruas e se alimente na mesa eucarística. Assim estaremos em comunhão. A liturgia “contribui de modo mais excelente para que os fiéis exprimam em suas vidas e aos outros manifestem o mistério de Cristo… É a fonte da qual emana o ser cristão” (Sacrossantum Concilium, 2, 10).
Ser cristão é assumir as exigências éticas do Evangelho. Para Bento XVI, “o memorial do mistério pascal de Cristo reforça a comunhão entre irmãos e, em particular, estimula aos que estão enfrentados a que acelerem a sua reconciliação, abrindo o diálogo e o compromisso com a justiça” (Sacramentum caritatis, 89).
Depende de nós “que a vida da Igreja não se transforme numa peça de museu ou propriedade de poucos” (Papa Francisco, Gaudate et exultate, 58).
“A oração só se dá em espírito de amor. Quem não ama finge que reza” (Papa Francisco).
Élio Gasda – Dom Total