O recente e premiado filme “Homens e deuses”, de Xavier Beauvois, sobre os monges trapistas de Tibhirine, na Argélia, colocou em cena o caminho trilhado por muitos buscadores do diálogo, em particular com o islã. São muitas e ricas as experiências que se encontram em curso no tempo atual, com relatos impressionantes sobre a vocação de hospitalidade cristã no mundo muçulmano. São buscadores que seguem a preciosa trilha de Charles de Foucauld e Louis Massignon. Nesses últimos anos saíram publicadas duas singulares obras sobre o itinerário de Paolo Dall´Oglio, um jesuíta que vem consagrando sua vida ao diálogo fraterno com o islã: Guyonne de Montjou. Mar Moussa. Un monastère, un homme, un désert. Paris: Albin Michel, 2006; Paolo Dall´Oglio. Amoureux de l´islam, croyant en Jésus. Yvry-sur-seine: Les Éditions de l´Atelier, 2009 (com prefácio de Régis Debray) .
Paolo Dall´Oglio nasceu em Roma, no ano de 1954. Entrou para os jesuítas em 1975 e teve sua formação em línguas e civilização oriental no Instituto Universitário Oriental de Nápoles, bem como na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, onde finalizou seu doutorado em missiologia, em 1990, publicando sua tese em seguida: Speranza nell´islâm. Interpretazione della prospettiva escatologica di Corano XVIII. Genova: Marietti, 1991. Sua vocação mais profunda não estava, porém, voltada para a vida acadêmica. Um chamado mais forte vinha do deserto, do desafio de vida e comunhão com o mundo muçulmano. Os primeiros sinais dessa vocação nasceram fortuitamente, quando em viagem ao Oriente, em 1982, descobriu num velho guia turístico da Síria a existência de um mosteiro cristão abandonado no meio do deserto. A atração foi imediata, e um novo caminho descortinou-se para o jovem jesuíta. Tratava-se do Mosteiro de São Moisés o Abissínio (Deir Mar Musa el-Habashi). O mosteiro encontrava-se sob os cuidados da eparquia sírio-católica de Homs, Hama e Nebek, mas estava em ruínas. Sob o impulso de Paolo Dall´Oglio, com a ajuda do governo sírio, da Igreja local e de um grupo de voluntários, procedeu-se sua restauração, iniciada em 1984.
Ali, naquele ermo incrustado na rocha, às margens do deserto, nasce a comunidade mista al-khalil (“o amigo de Deus”), um título bíblico e corânico aplicado a Abraão. A regra da confederação monástica, aprovada pelo Vaticano em 2006, indica três prioridades básica e um horizonte específico. Dentre as prioridades, a vida contemplativa, o empenho no trabalho manual e a hospitalidade abraâmica. Quanto ao horizonte almejado, a particular consagração ao amor de Jesus Redentor para os muçulmanos e a comunidade (Umma) muçulmana. Em síntese, uma comunidade integralmente voltada para o diálogo interreligioso. A comunidade conta hoje com dez pessoas. Além de Paolo Dall´Oglio, que é o prior, comungam também da experiência: Jacques, Houda, Jihad, Jens, Boutros, Dima, Yussef, Dany e Diane. Há que sublinhar a profunda amizade que liga Paolo a Houda, das primeiras monjas que entrou para a comunidade. Depois de perder o marido de forma violenta num acidente de carro, encontrou a acolhida espiritual em Mar Musa. Paolo fala do misterioso amor que se firmou entre os dois, “grande como o mosteiro e todos os desertos”. Sobre ele falou: “Houda ensinou-me a amar mais profundamente. E eu a ensinei a amar a todos. Aprendemos a nos amar numa casta nupcialidade. Fomos consignados à relação com Deus, que nos convoca continuamente ao outro, como para o próprio espelho”.
A comunidade assumiu o rito sírio-católico como forma de melhor se inculturar entre os muçulmanos. Foi igualmente uma forma de reatualizar o monaquismo oriental que o islã conheceu e respeitou desde o século VII. Foram razões dialogais que motivaram essa adesão: tanto a oração como a liturgia siríacas vinham marcadas pelo mesmo ritmo da espiritualidade muçulmana. Adotou-se também o árabe como língua comunitária. Sobre essa decisão argumenta Paolo: “Aqui falamos a língua do Corão; somos uma igreja que tem mais de quinze séculos e falamos a língua sagrada e litúrgica de todo o islã… porque o islã é uma religião que tende integralmente para a Verdade, e é aqui que se encontra com nós cristãos”. Para os muçulmanos, a língua árabe é como a hóstia para os cristãos, é “carne da revelação corânica”, o “ditado sobrenatural” que evidencia e cristaliza o Deus único.
Num país de grande maioria muçulmana, com 75% de muçulmanos sunitas e um pouco mais de 10% de muçulmanos xiitas, a presença de uma comunidade cristã aberta ao diálogo ganha um significado precioso. O outro aparece aqui como um “caminho de acesso ao mistério”. O segredo e vitalidade da comunidade de Mar Musa está nessa abertura gratuita, no dom da hospitalidade. Seguindo a trilha de Massignon, Paolo Dall´Oglio busca fazer de Mar Musa uma comunidade de pessoas que se oferecem ao outro. Retoma-se a inspiração da badaliya, que significa “substituição”. É um termo que deriva da expressão árabe abdâl (abdâl é o plural de badal). Os abdâl são como os santos muçulmanos desconhecidos, os bons muçulmanos, marcados por uma espiritualidade do cotidiano. Eles são escolhidos por Deus para “cicatrizar as feridas do mundo mediante o dom de si mesmos, através da paciência, da humildade, do silêncio e da pequenez assumida com amor”.
A ousadia dialogal dessa experiência comunitária provocou mal entendidos e desconfiança entre determinados segmentos da comunidade católica, que viam o risco do sincretismo. Coloca-se também a questão da “dupla pertença” defendida pelo prior da comunidade. Ele, porém, justifica:
“Vivo a minha relação com o islã como uma espécie de pertença. Mas sejamos claros, a minha fé cristã não vem jamais camuflada ou diminuída por tal pertença; ao contrário, ela quer ser ortodoxa, total e fiel à sua dinâmica específica. Quando digo que pertenço ao islã, quero dizer que do ponto de vista cultural, linguístico e simbólico, sinto-me profundamente em casa no mundo muçulmano”.
Paolo assinala que é sua relação pessoal com Jesus de Nazaré e o amor à Igreja que garantem a tranquilidade de sua pertença cristã. E acrescenta que se tal vínculo não existisse já se teria convertido ao islã. Marco Lucchesi, que visitou a comunidade de Mar Musa, e com ela se encantou, descreve a posição de Paolo Dall´Oglio, que é uma das razões que garantem a ousadia dialogal: “Abrimo-nos profundamente à religião muçulmana e à sua civilização, em virtude da tranquilidade de nossa fé em Cristo, e não por uma dúvida a seu respeito” (M.Lucchesi. Os olhos do deserto. São Paulo: Record, 2000, p. 57).
Paolo Dall´Oglio defende uma inculturação guiada pela “hermenêutica do amor”. Vê a Igreja como uma comunidade em movimento, sempre operada pela ação inusitada do Espírito, que abre caminhos singulares de seguimento. O caminho dialogal não se deixa perder por meras assimilações recíprocas ou equívocas misturas, mas volta-se para um “horizonte condiviso sobre o qual projetam-se sínteses capazes de pluralismo na comunhão”. Na comunidade de Mar Musa ocorre a partilha de experiências interreligiosas. Mas Paolo não desconhece, por exemplo, a complexidade que envolve a oração interreligiosa. Admite a existência de níveis diversos que regem o culto em comum. Há momentos que se permitem intercessões comuns e a recordação de Deus ( dhikr); mas outros que guardam uma peculiaridade identitária, própria de cada particularidade, como as orações litúrgicas cristãs ou muçulmanas. E também um nível misterioso, operado pelo Espírito, que convoca lábios e corações a uma invocação partilhada.
Exemplificando um traço dessa peculiaridade interreligiosa, Paolo Dall´Oglio relata uma situação vivida no diálogo com um amigo sufi. Busca aconselhar-se com o amigo sobre um rapaz muçulmano que acorrera ao mosteiro buscando a conversão cristã. E indaga sobre qual melhor decisão tomar. Em sua resposta, o amigo sufi simplesmente assinala: “O Senhor o enviou, tu deves guiá-lo com sinceridade do coração”. Em seguida, o amigo sufi encaminha-se para as abluções preparatórias para a oração, uma vez que a noite se anunciava, e convida Paolo para fazer o mesmo. Seguindo um caminho inusitado, Paolo fecha os olhos e se volta para o Gólgota, lavando-se com a água que saía do flanco do Senhor. Depois de feitas suas abluções, o amigo sufi convida Paolo para fazer o mesmo e ele responde: “Já o fiz”. Os dois partilham com intensidade suas orações. Ao final, o amigo pergunta a Paolo sobre o local em que fez suas abluções. E ele responde: “Em Jerusalém, nos pés da cruz”. E amigo conclui: “Compreendo, a tua oração é legítima”.
O que anima a vida e a prática da comunidade de Mar Musa, e de Paolo Dall´Oglio, em particular, é o respeito ao outro. Não pode haver diálogo fora dessa dinâmica de atenção, acolhida e respeito à alteridade. É verdade que os cristãos buscam a unidade, uma unidade que está sendo a cada momento construída, mas também os muçulmanos vivem em profundidade essa experiência de unidade. Num congresso sobre ecumenismo, ocorrido em Damasco, Paolo assinalou que aqueles que não amam a unidade dos muçulmanos não podem nem compreender nem amar a unidade dos cristãos: “Um cristão que não ama ver os muçulmanos unir-se entre si não pode desejar a unidade na própria religião. A unidade não se divide. Ou se ama a unidade para todos, ou não se ama a unidade”. Para Paolo, esconde-se misteriosamente em toda a diversidade das religiões uma sabedoria de Deus, que acolhe com alegria o sussurro do plural. É alguém que acredita no diálogo em profundidade: “Tenho confiança no fato de que, mediante o diálogo, a Igreja descobrirá a atividade do Espírito nas outras tradições, compreenderá o ato consumado por Deus naquela revelação polêmica que o islã representa na história da humanidade”.
Em sua visita à grande mesquita de Damasco, dos Omíadas, em 2001, o papa João Paulo II veio acompanhado por monges de Mar Musa, entre os quais Paolo Dall´Oglio. Nessa ocasião Paolo dirigiu-lhe as seguintes palavras: “Santo Padre, há dezoito anos, na chiesa del Gesù, em Roma, abençoastes minha vocação ao diálogo. Ofereço-lhe agora o fruto dessa bênção: uma comunidade monástica, consagrada ao diálogo islamo-cristão”. Com o olhar voltado para o grupo, o papa alçou suas mãos e abençoou a todos. Como tão bem sublinhou o poeta Marco Lucchesi, esse mosteiro no deserto, que abriga buscadores tão especiais, é uma luz que se avisa de longe e que ilumina o coração. É uma parada obrigatória no curso de nossa peregrinação, “na qual Deus se torna nosso hóspede e nos tornamos hóspedes de Deus”.
Faustino Teixeira
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.