Cientistas sociais do futuro encontrarão na pandemia farto material de pesquisa. Eles terão o que nós não temos: o benefício da passagem do tempo, que filtrará as potencialidades que o momento atual abre e que se cristalizarão nas escolhas e na ação dos diversos agentes sociais. O privilégio que nos resta é o de mapear as possibilidades, dilemas e ensinamentos que a pandemia nos lega, e que podem nos orientar como cidadãos na procura de um futuro melhor para nossas sociedades.
I.
A pandemia nos apresentou em forma nua e dramática um problema sempre presente na sociedade: a vida social exige conviver com valores contraditórios, que nos obrigam a hierarquizar, dosar e negociar as demandas de cada um. Como responder às exigências de controle da epidemia e salvar vidas, e às da economia, mas também da educação, do equilíbrio psicológico, tudo isso buscando preservar a privacidade frente ao uso de sistemas de vigilância eletrônica?
Alguns governantes, como no caso brasileiro, ignoraram o conhecimento científico, negando a importância da doença e promovendo medicamentos sem comprovação, tudo em nome de “manter a economia funcionando”, baseados em cálculos eleitorais. A reação a esta atitude ignorante e irresponsável não deve nos levar, por outro lado, à suposição de que a ciência pode nos dar respostas unívocas do que deve ser feito.
Procurar soluções exige, em primeiro lugar, a capacidade de utilizar o conhecimento científico disponível, mas se a ciência é o ponto de partida, as respostas são decisões políticas que cabem às autoridades públicas. Devem ser julgadas pela sua capacidade de maximizar o bem comum.
A pandemia levou ao centro do espaço público um personagem geralmente relegado às margens: os especialistas em saúde pública. Que a disciplina preponderante nos meios de comunicação, a economia, tenha perdido espaço para a medicina, representa um importante corretivo para o debate público e para a consciência cívica da população. Essa correção nos lembra que o primeiro objetivo da uma comunidade é preservar a vida, e, portanto, o sistema de saúde deve ter um lugar prioritário na política nacional. Isto sem mencionar a necessidade de reconhecer e prestigiar os funcionários do sistema de saúde, em especial os que trabalham nos hospitais, como se viu em muitos países do mundo. No Brasil, o governo federal nada disse a esse respeito. E a sociedade, exceções à parte, não fez ouvir sua voz de apoio como deveria.
A centralidade que os especialistas da área devem ter em situações de crise de saúde pública é inegável — o que não significa que caiba a eles a decisão última sobre o que deve ser feito. Como em toda disciplina cientifica, além de diferença de opiniões, a saúde pública se orienta por um único critério, e por mais fundamental que ele seja, a vida em sociedade não pode ser reduzida a uma única variável. A melhor escolha, como ensina a teoria dos sistemas, é aquela que se utiliza de múltiplos critérios.
Em vários países, governos formaram comissões multidisciplinares para enfrentar a pandemia, e, quando necessário, assumiram posições divergentes dos especialistas em saúde pública. Recentemente, o Ministro da Educação da França foi perguntando por que se decidiu pela reabertura das escolas, divergindo da opinião dos epidemiologistas, e respondeu que, tomando todas as precauções possíveis, devia levar em conta vários critérios para assegurar o bem público. Não se trata de o político desconhecer ou se colocar acima do conhecimento cientifico, mas de assumir o papel que lhe foi delegado pelo voto, como responsável último pelas decisões e suas consequências, pelos rumos que o país deve tomar.
II.
O conflito entre a liberdade individual e a proteção do bem comum, foi colocado em forma aguda durante a pandemia. O poder público, em nome da preservação da comunidade, pode limitar a liberdade individual, seja de movimento, de expressão, ou impor medidas, como a vacinação obrigatória ou uso de máscaras?
Não é aqui o lugar de entrar nos meandros de um tema complexo. O que nos interessa indicar são algumas lições que podem ser retiradas da experiência recente durante a pandemia.
A liberdade é um valor fundamental numa democracia. Como todo direito, ele exige sua delimitação legal para assegurar que a liberdade não seja utilizada para produzir danos em terceiros. O respeito às regras de quarentena, a utilização de máscaras, o distanciamento social, são medidas necessárias para assegurar o bem-estar público. A questão que se coloca é como assegurar que elas não eliminem a possibilidade de expressar o desacordo e o protesto social.
Situações sociais extremas, como uma pandemia ou uma guerra, esticam ao limite a possibilidade de aplicar normas gerais que asseguram as liberdades individuais. No caso de uma pandemia, a expressão individual de desacordo com políticas públicas, como não usar máscaras ou não manter a distância social, é uma afirmação egoísta, quando não narcisista, que acarreta grave dano à sociedade.
O que me parece questionável, sim, é que se negue o direito a realizar manifestações coletivas de protesto. Certamente que manifestações públicas, em situação de pandemia, apresentam um enorme risco de contágio. Por outro lado, proibi-las não só retira do público um recurso fundamental de participação política como também permite que o Estado, ou grupos políticos, possam se aproveitar da situação.
Não foi circunstancial que a movimentação em torno do presidente Bolsonaro a favor do AI-5 tenha acontecido durante o início da quarentena, aproveitando de que as pessoas estavam isoladas nos seus lares. As manifestações de rua contra o movimento golpista, se é de lamentar que muitos manifestantes não tenham tomado os cuidados suficientes para se proteger do contágio, foi uma declaração dos cidadãos que a defesa da democracia se sobrepunha até às medidas sanitárias.
Um dos paradoxos do caso brasileiro, nesse sentido, é que o grupo que empunhava a bandeira da liberdade para desconhecer as medidas de saúde pública o fazia para manifestar apoio a um “novo AI-5” — isto é, propondo a censura e a destruição da liberdade. Aliás, um fenômeno similar ao que acontece em torno do debate sobre a regulação das fake news. Aqueles que são contra, são os mesmo que utilizam as redes sociais para divulgar mensagens que visam a destruição das instituições democráticas e a promoção do autoritarismo.
III.
A pandemia, com seu enorme custo social e de vidas, poderá produzir algumas consequências positivas — se a sociedade brasileira for capaz de se apropriar dos novos impulsos que ela gerou.
As fake news entraram em refluxo. Não que elas tenham deixado de ser disseminadas, mas perderam terreno. À falta de “comunistas”, feministas, e políticos brasileiros para culpar, os propagadores de fake news divulgaram teorias conspiratórias, como a que diz que o vírus foi produzido na China, (utilizando uma declaração de um prêmio Nobel japonês, desmentida pelo próprio, e desconhecendo as conclusões da CIA e da Organização Mundial da Saúde a respeito da origem do vírus). Rapidamente descobriram que os brasileiros não estavam preocupados com conflitos geopolíticos importados, e sim em saber como o vírus afetava suas vidas. Voltaram então a demonizar velhos conhecidos — incluindo agora na lista Sérgio Moro e Luiz Henrique Mandetta — mas perderam parte do impulso, que certamente ressurgirá com o fim da pandemia. Esperemos que tenha aumentado a imunidade da população em relação as notícias falsas.
O jornalismo profissional ressurgiu com força. Um fenômeno aparentemente paradoxal é que pessoas que criticam os meios de comunicação tradicional, quando devem conferir notícias que afetam suas vidas, checam a veracidade na imprensa na qual “não acreditam”. Em tempos de pandemia, a imprensa passou a ser incontornável. Se há algo a lamentar, é que o silêncio do Presidente e de seu atual Ministro da Saúde sobre o andar da pandemia, em particular depois que o governo deixou de transmitir números totais de contágios e mortes (da qual teve que voltar atrás por decisão do STF), levou os jornalistas a enfatizar o que o governo quis esconder, a expansão da doença, com pouca informação e análises diárias mais meticulosas das tendência da em cidades e microrregiões. Quando o governo falha em informar, o jornalismo cumpre o importante papel de alertar a população para os riscos que está correndo. Mas isso não exime a imprensa do esforço de uma cobertura mais detalhada.
O ataque às instituições acadêmicas e cientificas recuou. No início do atual governo, tivemos que conviver com uma investida sistemática contra o mundo acadêmico, falsamente apresentado como constituído por “parasitas” cujo único objetivo seria difundir ideias perigosas para a moral pública. Graças à pandemia a maioria da população descobriu que o Brasil possui centros de excelência cientifica nas mais diversas áreas, dos quais nós devemos orgulhar, e que as respostas devem ser procuradas na ciência, personificada em profissionais da medicina e em remédios e eventual vacina que venha a ser produzida. Esperemos que os centro universitários e de pesquisa recuperem suas verbas, e passem a ser apoiados e não perseguidos.
O mesmo vale para alguns líderes religiosos que continuaram divulgando explicações sobrenaturais sobre o surgimento da pandemia e prometendo curas milagrosas para o novo coronavírus. Essa é uma postura que ainda vê a ciência e a religião como incompatíveis, e considera Deus uma entidade paternal autoritária que castiga o povo, a partir de uma leitura primária da Bíblia. (Afinal, se a pandemia responde a um designo divino e ela resultar num fator central para a derrota eventual de Donald Trump, será que Deus enviou o coronavírus com este objetivo?) O terraplanismo continuará, mas a valorização do conhecimento científico foi revitalizado.
A ignorância do conhecimento científico tem um preço político. A negação de dados e informações “inconvenientes”, o desrespeito por aqueles que possuem um conhecimento consolidado nas suas áreas (seja de relações internacionais, da educação ou da saúde), a divulgação sistemática de mentiras, são expedientes que podem ser eficazes para abocanhar apoio eleitoral e chegar ao poder. Com o tempo, porém, a sociedade termina descobrindo seus efeitos nocivos — infelizmente, muitas vezes depois de sofrer danos enormes.
Vemos, finalmente, que o Estado não deve ser nem pequeno nem grande: deve responder de forma eficiente às necessidades da população. O debate sobre um “Estado mínimo” vs. um “Estado grande” se mostrou, como não poderia deixar de ser, uma falácia. Não existe uma sociedade moderna viável sem um estado capaz de assegurar o bem-estar básico da população, promover o progresso da ciência e da tecnologia, coordenar e regular as mais diversas atividades e suavizar o impacto econômico e social das flutuações do ciclo e das transformações econômicas. Situações de crise realçam estas funções, que estão sempre presentes. Há políticas neoliberais, não um Estado neoliberal, que seria tão distópico quanto uma sociedade sem mercado.
No lugar de atacar o Estado, o que se trata é de melhorá-lo.
Bernardo Sorj
Sociólogo brasileiro, professor titular aposentado de Sociologia na UFRJ, diretor do Centro Edelstein e Plataforma Democrática.