Neste ano, a missa do Domingo de Ramos traz o relato da Paixão de Jesus Cristo contido no Evangelho de Mateus. Conforme o relato, Pilatos lava as mãos diante da multidão e diz que não é responsável pela morte de Jesus. E “o povo todo respondeu: ‘Que o sangue dele caia sobre nós e sobre os nossos filhos’” (Mt 27,25). Assim tem início a suposta culpa coletiva e hereditária do povo judeu pela morte Jesus. Os Evangelhos de Mateus e Lucas consideram a destruição de Jerusalém e de seu templo, nos anos 70, uma punição divina por esta morte.
A tradição cristã consolidou a imagem do judeu como povo deicida, isto é, que matou Deus. Por mais de mil anos, na liturgia latina da Sexta-Feira Santa se rezava pelos “pérfidos judeus”. Ao longo da história, eles foram hostilizados por gente simples, confinados em guetos, massacrados por cruzados, expulsos de reinos e perseguidos pela Inquisição. O antissemitismo moderno, que culminou com o Holocausto, não se fundamenta na religião cristã, mas fez com que a milenar execração ao judeu fosse levada ao extremo. Somente na década de 1960, com o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica reconsiderou a suposta culpa coletiva e hereditária dos judeus pela morte de Jesus. Desde então, ensina-se que este povo não deve ser apresentado na pregação e na catequese da Igreja como amaldiçoado por Deus.
Há semelhanças entre a hostilidade aos judeus e a hostilidade aos LGBT+. O livro do Gênesis diz que Deus criou o ser humano homem e mulher, para se unirem e procriarem. Muitos daí deduzem que a existência de pessoas homossexuais e transgênero é uma aberração. Por muitos séculos, leis civis e eclesiásticas de reinos cristãos trataram as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo como sodomia, um crime horrendo que supostamente provoca a ira de Deus a ponto de destruir cidades inteiras. Ainda hoje, mais de 50 países criminalizam os atos homossexuais e alguns países os punem com a morte.
Inúmeros gestos e as palavras do papa Francisco têm ajudado significativamente no acolhimento de pessoas LGBT e na superação de hostilidades. Desde a célebre pergunta “quem sou eu para julgá-los”, até a recente entrevista posicionando-se contra a criminalização da homossexualidade. A um jovem gay, Francisco disse: “Deus lhe fez e lhe ama assim. Você deve ser feliz como você é”. Um documento da Pontifícia Comissão Bíblica analisa os textos da Bíblia usados para condenar a prática da homossexualidade, incluindo os mencionados no Catecismo, trazendo outras interpretações não condenatórias.
Neste caminho aberto pelo papa, os cardeais Jean-Claude Hollerich, de Luxemburgo, e Blase Cupich, de Chicago, pedem mudanças na doutrina da Igreja a respeito desde tema. Termos como “intrinsecamente desordenados” e qualquer linguagem que fere as pessoas devem ser reexaminados. A Igreja deve expressar seu ensinamento de modo a atrair as pessoas para Jesus. O seu modo de falar deve trazer cura.
A evolução da doutrina é uma realidade que faz parte da história da Igreja. Sem esta evolução, a Boa Nova, verdadeiro sentido do Evangelho, deixa de ser boa e deixa de ser nova. A correta compreensão das Sagradas Escrituras permite superar o ódio milenar contra o povo judeu. Oxalá leve também a superar o ódio contra os LGBT+.
*Luís Corrêa Lima é padre jesuíta, professor da PUC-Rio e autor do livro “Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos” (Ed. Vozes).