A mobilização antirracista no mundo provocou uma onda iconoclasta. Estátuas de colonizadores escravocratas são derrubadas, bem como de genocidas indígenas. Na capital paulista, houve a ameaça de pôr abaixo a imensa estátua de Borba Gato, de 10 metros de altura, erguida em uma praça do bairro de Santo Amaro. Será que o bandeirante merecia tal homenagem?

Manuel de Borba Gato (1649-1718) era genro de Fernão Dias Paes (1608-1681), “o caçador de esmeraldas”, que deveria ser mais conhecido como caçador de indígenas, já que os capturava nas selvas de Minas para o trabalho escravo nas lavouras de São Paulo.

Morto o sogro, Borba Gato foi intimado a colaborar com o administrador-geral das minas, dom Rodrigo Castelo Branco. Este lhe exigiu o espólio de Fernão Dias, como armas e mapas. O bandeirante se negou, alegando recomendações do finado. Com os brios feridos, o fidalgo desafiou Borba Gato para um duelo. Na refrega, dom Rodrigo pereceu, e o bandeirante, temendo a ira da Coroa, se escafedeu. Refugiou-se na região do Rio Doce, e dele não se teve notícias durante dezessete anos.

Homiziado pelos indígenas, Borba Gato submeteu-os a seu mando e, assim, soube de onde extraíam aqueles adornos dourados utilizados em seus rituais. Comunicada à Coroa a localização das minas de ouro, o bandeirante recebeu, em troca, perdão real pelo crime cometido.

Na guerra dos emboabas, entre baianos e mineiros, Borba Gato comandava os que afluíam a Minas pelo Caminho Geral do Sertão na caça de minerais preciosos e também de indígenas, para escravizá-los. Lisonjeava-se o bandeirante do apoio da Coroa, tão generosa por distinguir paulistas como gentis-homens da Casa Real. Pioneiros na região, os paulistas se apegavam ao direito de precedência.

Os adversários, comandados por Manuel Nunes Viana, português de Viana do Castelo, eram agricultores, pecuaristas, comerciantes, apoiados pelo governador do Brasil, Luís César de Meneses.

Borba Gato acusava Nunes Viana de contrabandista; teria este penetrado em terras mineiras a pretexto do gado que, retirado para pastagens menos acidentadas da Bahia, levava ouro na canga sem pagar o quinto à sua majestade, dom João V, o magnânimo, com danos à Fazenda Real.

Emboabas e paulistas trocavam acusações. De fato, os bandeirantes haviam aberto trilhas, fundado arraiais e povoados, furado as minas, mas eram os comerciantes, artífices e frades, que asseguravam roupas, alimentos, escravos, ferramentas, sem os quais a vida na região aurífera se tornaria impossível. E esses, mais letrados e operativos, tomavam partido a favor de Nunes Viana.

Eleito governador das Minas dos Cataguases, Nunes Viana logo entrou em disputa com Borba Gato: invadiu-lhe a jurisdição, nomeou novo superintendente das minas, proveu postos, e organizou três milícias de modo a intimidar os paulistas.

Contudo, o governador Antônio de Albuquerque reconduziu o bandeirante ao cargo de superintendente das minas.

Manuel de Borba Gato encerrou seus dias em Paraopeba, onde faleceu aos 69 anos.

Se fôssemos adotar essa medida iconoclasta, haveria que limpar São Paulo de tantas homenagens aos bandeirantes, inclusive mudando o nome da rodovia Fernão Dias, que liga o estado a Minas. Prefiro, entretanto, incluir nos monumentos placas contendo a versão da história pela ótica dos vencidos. Estes, na maioria das vezes, estão com a razão.

 

Frei Betto
Frade dominicano, jornalista graduado e escritor brasileiro. É adepto da Teologia da Libertação, militante de movimentos pastorais e sociais. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.