Para quem vive numa zona desafogada do mundo, a fome parece uma coisa do passado (há pessoas com fome em suas esquinas, mas são minoria.)
Até ao século 19, a principal preocupação da maioria da humanidade era obter alimento. Tirando a minoria rica, que sempre existiu em todos os países (ou sociedades), o homem comum tinha de pensar, sobretudo, se teria o suficiente para viver no dia seguinte. Não no futuro, ou nesse mês, mas amanhã. Com a industrialização, os aperfeiçoamentos técnicos agrícolas, a maior eficiência dos circuitos de distribuição – caminhos de ferro, refrigeração e outros melhoramentos –, o número de pessoas que passou a comer regularmente aumentou constantemente, isto nos países onde essas tecnologias se desenvolveram. Para dar só uma estatística, entre as muitas que demonstram este fato, a proporção de pessoas subalimentadas no mundo passou de 15 para 8,9% entre 2004 e 2019. Contudo, esta pequena porcentagem significa, em termos reais, que em 2019 havia 690 milhões de pessoas subnutridas. Quase a população da Europa inteira.
Mas o processo de melhoramento que teria começado há mais de cem anos, de repente começou a enfraquecer-se. Segundo a mesma fonte, o número de esfomeados aumentou 10 milhões entre 2018 e 2019 e agora, neste momento, há mais 60 milhões de subnutridos do que em 2014.
Isso, antes de surgir a pandemia da Covid-19. Num instante, um terço da população do mundo ficou sob alguma forma de confinamento, uma palavra que pouco se usava. No pico da crise, esse valor chegou a metade da população, afetando 90 países, num total de cerca de 200. As medidas tomadas pelos governos, que variaram dentro dum largo espectro, em termos globais perturbaram a produção e distribuição dos alimentos, mesmo em regiões não diretamente afetadas pela pandemia. A globalização dos circuitos alimentares, que era já aparente, revelou-se muito mais profunda; por exemplo – e há milhares de exemplos – as exportações de soja do Brasil, o maior produtor mundial, para a China, o seu maior consumidor, foram quase interrompidas. A Europa, e cada país europeu, que importam uma grande porcentagem dos frescos que consomem diariamente, sofreram uma escassez de produtos comuns.
Uma situação de carência de certos produtos alimentares não é a mesma coisa que um estado permanente de falta do consumo mínimo para viver, com certeza (1800 calorias por pessoa, mais ou menos). Mas levou à consciência da opinião pública um valor até agora praticamente desconhecido: o capital natural.
E o que é o capital natural? Em Ciência Econômica, desde que foi classificada como tal, em meados do século 19, considerava-se como valores básicos o capital e o trabalho. Capital é, como sabemos, o investimento financeiro necessário para produzir alguma coisa. O capital é um recurso limitado – elástico segundo circunstâncias e variáveis que não vamos analisar aqui, mas por definição sempre insuficiente para as necessidades. No entanto, quando o capital não chega, há sempre métodos de o criar, uma vez que o dinheiro é um bem artificial.
Já o mesmo não acontece com o capital natural, que pode ser definido como a quantidade de produtos naturais que a Terra produz, ou seja, as matérias primas a partir das quais o trabalho produz coisas, alimentos ou máquinas, com os meios fornecidos pelo capital “tradicional”. Sendo um bem natural, é limitado e, embora possa ser “esticado” com um melhor aproveitamento das matérias primas – novos adubos, ou rotatividade das culturas, descoberta de novas jazidas minerais, ou métodos mais eficientes de retirar petróleo do subsolo – há um “teto” inultrapassável. A Terra só pode fornecer uma quantidade limitada dos recursos que usamos cada vez mais.
A partir de 1961, no âmbito das Nações Unidas, um órgão chamado Painel Intergovernamental Sobre Alterações Climáticas – IPCC, começou a estudar esta questão do Capital Natural, uma vez que as alterações climáticas são uma variante importante na sua formação.
No relatório de 2019, o IPCC afirma que “o crescimento da população mundial e o consumo per capita de alimentos para humanos e animais, fibras, madeiras e energia, provocaram gastos sem precedentes na utilização das terras e de água doce.” E ainda: “A atividade agroalimentar é responsável por 30% da emissão de gazes de estufa e absorve 70% do consumo de água doce do planeta. Além disso, cerca de um terço dos estoques de peixe são sobre-explorados”.
Uma outra organização, não governamental, o Global Footprint Network – GFN, tem-se dedicado a medir com a precisão possível qual é o valor do Capital Natural.
A estatística começa em 1970 e é facilmente compreensível: quantos dias de um ano precisa a Humanidade para consumir os recursos naturais disponíveis nesse ano? Em 1970 o consumo corresponde a 13 meses. Ou seja, os humanos consumiram tudo o que a Terra tinha para lhes dar nesse ano e ainda um mês do ano seguinte. Se isto parece assustador, muito mais é o aumento constante que se verificou desde então. Em 2018, os humanos consumiram o equivalente a 1,7 terras – ou seja o que tinham disponível em 2018 mais oito meses de 2019.
Todavia, há algumas esperanças. Os métodos de exploração da natureza estão constantemente a aperfeiçoar-se a vão-se adaptando às necessidades, como a substituição da energia fóssil, limitada, por energia solar ou eólica, inesgotáveis. Outras situações, menos publicitadas, mas que provocam pequenos ganhos, são a criação de animais de uma forma mais “biológica”, a imposição de quotas para a pesca, ou a criação de peixes em recintos fechados. Os novos métodos têm os seus detratores e defensores, mas de fato são necessários.
Outra variável a considerar é o que as pessoas comem. Quem não passa fome, tem, mais ou menos, a possibilidade de escolher o que come. Muitos vegetarianos não consomem carne não porque lhes desagrade o sabor, mas porque sabem o consumo de capital natural necessário para criar um animal.
Mas essas possibilidades de escolher as suas 1800 calorias diárias levando em consideração fatores ambientais não tem levado a humanidade, como um todo, a um consumo mais preservador do planeta. Num estudo feito antes da pandemia, concluiu-se que são estes os dez alimentos mais consumidos no mundo: (se não está sentado, sente-se, porque vai ficar completamente estupefato!):
Batatas fritas, queijo fundido La Vache Qui Rit, Coca-Cola, café solúvel, tilápia (é um peixe), goma de mascar (!), leite condensado, Nutella (pasta de chocolate com avelãs), algas, e ketchup Heinz.
Talvez esta lista, francesa, seja um pouco francófona. Será? Mas não são os franceses famosos pela sua culinária e um povo notoriamente gourmet?
Então, aqui vai outra lista. Esta refere-se aos Estados Unidos e tem a particularidade de ser da altura em que havia muita gente confinada. Foi elaborada pela Uber Eats, usando as encomendas para serem entregues à porta do cliente. Estão por estados e veja estes casos:
Arizona, Florida, Illinois, Soouth Carolina e Virginia: batatas fritas (em palitos). Califórnia: Frango tikka masala. Colorado: pedaços de carne grelhada (que eles chamam, “carne assada”) com batatas e molho de queijo derretido. Connecticut: burritos. Georgia, Kentucky, Michigan e Tennessee, Texas: Pad thai. E por aí vai…
Portanto, não só comemos mal, como estamos comendo o planeta, literalmente. Ou, por outras palavras, matamo-nos mais depressa com o que consumimos e estamos a encurtar a vida das gerações futuras.
Mas não vamos terminar este breve comentário com uma nota sombria. Os hábitos alimentares mudam muito, mas mesmo muito, de país para país, e geralmente nos menos desenvolvidos come-se melhor (quando se tem o que comer) do que nos desenvolvidos. Vale a pena ver o ensaio que o fotógrafo Peter Menzelfez mostrando o que consomem por semana 30 famílias em 24 países. Independentemente da escolha de cada um, Menzel consegue, de uma maneira sutil, fazer-nos acreditar um bocadinho na felicidade do consumo!
José Couto Nogueira – Dom Total
O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova York foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal