Não deu nem tempo de levar a cadeira para casa. Quando a pandemia de Covid-19 quarentenou o Brasil, quase todo profissional não-essencial foi dispensado ou convidado a trabalhar de casa. Serviços de saúde, alimentação, transporte, entrega e emergência não podiam parar.

A pausa que prometia durar algumas semanas já completa sete meses, apesar dos movimentos de flexibilização. O estrago econômico desse distanciamento pode ser sentido em um passeio pelas ruas. De portas baixadas, muitos negócios não sobreviveram: 40% das empresas que fecharam até meados de junho atribuíram seu encerramento à pandemia, segundo o IBGE.

Como reflexo desse transtorno, o mercado de trabalho também se alterou: 8,7 milhões de brasileiros já trabalhavam remotamente em maio, enquanto 19 milhões foram afastados da função. Outros 9 milhões foram engrossar o coro dos “desocupados” (classificação do instituto), que em setembro bateu a casa dos 14,1%, contabilizando mais de 13,5 milhões de desempregados.

“É a primeira vez que a série histórica indicou um nível de ocupação abaixo de 50%”, afirmou ao TAB Adriana Beringuy, gerente da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE. O cenário pressionou o governo brasileiro a instituir um auxílio emergencial para os mais afetados pela crise econômica. Foram mais de 51 milhões de inscrições.

Os números também foram drásticos nos EUA. O jornal The New York Times precisou de uma página inteira para mostrar a perda repentina de 20 milhões de posições de trabalho em abril, quando o país registrou 14,7% de desemprego, época em que o número de inscritos nos programas de auxílio emergencial passava de 40 milhões.

Isso não é Home Office
Trabalho remoto não é novidade. Mais de 3,8 milhões de brasileiros estavam em esquema de home office há dois anos, segundo o IBGE. O que a pandemia fez foi colocar profissionais que jamais haviam pensado em atuar à distância para trabalhar da sala ou do sofá de casa.

Em muitos casos, mal puderam recolher seus blocos de nota. Mas o que tem rolado de março para cá não é home office. “É trabalho remoto feito no improviso, e que tem aos poucos se ajustado”, diagnostica Thatiana Cappellano, consultora de comunicação organizacional que apoia equipes de RH de empresas brasileiras.

Segundo Cappellano, um regime de trabalho remoto prevê, entre outras coisas, o preparo de toda a equipe e equipamentos. “Não sei se o empregado reparou, mas o custo dele aumenta. A luz agora é dele, assim como a internet, a alimentação e até a estrutura.”

Para ela, o próximo passo das empresas que mantiverem o regime de trabalho a distância será pensar em um “pacote home office”, que inclua itens como computador, telefone, fone de ouvido, mesa e uma cadeira confortável. Quem passou semanas sentado de maneira inapropriada sabe a dor nas costas que a ausência desse “pacote” pode causar.

Também há queixas emocionais às quais os líderes precisam estar atentos. Cappellano diz ter percebido certa aversão dos colaboradores ao trabalho remoto, provavelmente devido ao acúmulo de atividade. Faz sentido. “As pessoas estão trabalhando e cuidando da casa, do filho, da faxina, da planta, do gato, da entrega que chega no meio da reunião, tudo junto”, elenca Cappellano.

Apesar da precariedade da implementação, o home office de emergência provou o que muitas empresas e gestores evitavam admitir: mesmo distanciados, os colaboradores entregam. E há a economia em aluguel, água, luz. Facebook e Twitter liberaram o home office por tempo indeterminado. Google só vai pensar em voltar em 2021, e empresários devolveram imóveis e reduziram os espaços alocados. O Banco do Brasil já entregou 19 dos seus 35 escritórios.

Privilégio de morar longe
Vontades como “morar na praia” ou “mudar para o interior”, que antes eram adiadas para a aposentadoria, de repente se tornaram factíveis. Houve quem aproveitou para exercer o home office em toda a sua glória e zarpou para o interior ou para o litoral.

“Há tempos falávamos de morar em Ilhabela, e a pandemia nos forçou a um desapego que sem ela não fomos capazes de fazer”, conta Bia Granja, diretora da consultoria youPIX, que se mudou com o marido, o filho e duas cachorras para o litoral norte paulista.

Leonardo Paz, CEO do site ImóvelWeb, viu duplicar a procura por imóveis em cidades como Sorocaba, Bragança Paulista e São José dos Campos, que estão a cerca de 100 quilômetros de São Paulo, especialmente para contratos de locação, por causa da incerteza do momento. “Há uma grande demanda por casas maiores em cidades com acesso fácil, boas escolas e estrutura de saúde”, contou Paz durante uma live do SECOVI-SP. Movimento semelhante também foi sentido em cidades como Londres, São Francisco e Nova York. Entre os norte-americanos, 40% consideraram se mudar, segundo dados da Harris Poll.

Mauro Rochlin, economista e professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas), acredita que o home office pode transformar o setor imobiliário. Ele frisa que haverá diferença entre o que chamou de “trabalho braçal”, que exige presença física, e o trabalho intelectual, que poderá migrar para fora do ambiente de trabalho. O impacto será sentido também na urbanização, no transporte e até nos serviços. Rochlin cita o caso das cidades ao redor do Rio de Janeiro, que têm visto um aumento da circulação de um público de alto poder aquisitivo. “Antes, os comerciantes desses locais tinham dez dias de bonança durante o carnaval. Agora, toda semana é carnaval”, conta.

Essa movimentação impacta até as políticas corporativas sobre onde se instalar, como foi o caso da XP Investimentos, que em julho anunciou planos de construir uma nova sede em São Roque, a 60 km da capital paulista. Para o sociólogo Ricardo Festi, professor da UnB (Universidade de Brasília), esse impacto deve se dar de forma desigual, já que nem todo trabalho pode ser realizado à distância. Ele frisa uma certa inversão no “privilégio” de morar longe ou perto do local de trabalho. “Bombeiros, policiais ou caixas de supermercado não podem ser remotos. O risco da última, inclusive, é a ameaça de automação, que já existia antes da pandemia e agora se intensifica”, reflete Festi.

Sair para trabalhar?
Não, o home office não é para todos. Os chamados serviços essenciais não englobam apenas os profissionais da saúde, como médicos e enfermeiros, mas também profissionais de transporte, alimentação, logística e entregas.

A maioria se adaptou ao distanciamento social, adotando o uso de álcool em gel, máscaras e até escudos faciais, além de ter sido levada pela força da necessidade a se digitalizar. Quase todo comércio hoje pode ser contatado por um número de WhatsApp, ainda que as portas estejam baixadas. A impressão é que quem não fez isso, sumiu. “Antes da pandemia, 45% dos micro e pequenos empresários não usavam mídias sociais, e agora precisaram fazer isso com velocidade”, explica Wilson Poit, diretor superintendente do Sebrae-SP.

Ele viu o número de MEIs (microempreendedores individuais) no estado de São Paulo aumentar 21%, de 2019 para 2020. “Quando há aumento do desemprego, muitas pessoas encontram no empreendedorismo uma alternativa de renda ou até a única renda possível”, explica Poit.

Parte dessa mão de obra ociosa e ansiosa por renda também vai parar nas plataformas, como os aplicativos de entrega, que viram a demanda aumentar 77% nas primeiras semanas da pandemia. Niels van Doorn, professor da Universidade de Amsterdã e pesquisador de trabalho plataformizado, conta ao TAB que a situação dos entregadores, no início da pandemia, era menos drástica, apesar do inegável risco.

“Vai soar horrível, mas em mercados como Nova York, os entregadores estavam animados, porque tinham muito trabalho, as ruas estavam vazias e as plataformas ofereciam bonificações para quem fazia entregas. Mas, quanto mais o trabalhador passa a depender da plataforma como sua única fonte de renda, mais precário esse trabalho se torna”, alerta Niels. Foi exatamente durante a pandemia que os entregadores se organizaram em dois dos maiores protestos da categoria no Brasil, no Breque dos Apps.

Não é para todo mundo
Diante de tantas incertezas, os especialistas ouvidos pelo TAB esquivaram-se de tentar prever o que virá. “Infelizmente vamos entrar em uma crise muito profunda, em várias frentes. Ainda não sabemos se o capital implementará novas tecnologias de automação”, especula Festi. O risco de automatizar funções rapidamente é gerar um desemprego estrutural muito alto e queda no consumo.

Além disso, existem questões amplas sobre como se desenrolará a divisão do trabalho em âmbito mundial, que desde os anos 1990 apostou na China como a “fábrica do mundo”. “Será que vamos manter a produção central industrial na China, ou vamos retorná-la para os países?”, provoca Festi, citando como exemplo a promessa do Japão de investir US$ 2 bilhões para trazer empresas de volta ao país. “Do ponto de vista social e de renda, a situação tende a piorar”, afirma o professor.

Como evidenciam os dados do IBGE, o trabalho remoto atende majoritariamente os homens brancos com ensino superior. A digitalização acelerada pela pandemia levará a transformações irrefreáveis na indústria, que tenderá à maior automação. O comércio deve se tornar mais digital, apostando em lojas online, entregas e pagamentos digitais, enquanto o setor de serviços ganhará versões digitalizadas do que for possível, como aconteceu com os atendimentos de telemedicina, sessões de terapia online e até aulas virtuais.

Para os trabalhos intelectuais, a tendência é a adoção de modelos híbridos, com parte da jornada executada remotamente e parte feita presencialmente. Caso essa tendência se mantenha, é possível que o cenário urbano se altere, com um fluxo de famílias se mudando para o interior.

Thatiana Cappellano também acredita que podemos ver formas de contratação mais fluidas, que vão desde contratos por empreitada (via CLT ou via CNPJs uniempresariais, prática conhecida como pejotização) até a possibilidade de atuar para mais de uma empresa ao mesmo tempo, em duas jornadas de meio período.

Setores movidos pelos encontros ao vivo, como eventos, festas e entretenimento, não desaparecerão. Quem já teve a chance de participar de uma festa por videoconferência deve ter reparado que ela não tem a mesma graça. Olhando daqui, ainda em meio a uma pandemia, fica difícil prever se as mudanças serão boas ou ruins. O que certamente sabemos é que será bem diferente do que já vimos até aqui.

UOL-TAB