Como definir a experiência do deserto, senão através de aparente recorrência?
A tautologia surgiu no coração do deserto. Um anjo disse: A = A. Mas quando veio o diabolus, descobrimos a cifra de um paraíso perdido. A ≠ B.
O deserto, antes dele. O deserto, dentro dele. O pós-deserto. Três mundos que divergem, irredutíveis. A soma de matéria incandescente.
Deserto: um texto em branco cheio de impurezas. O mistério da noite que um cego vislumbra. A estática o precede, mudo e ruidoso. O nada é pura fonte de eloquência.
O que se perde se concentra no infinito.
Três desertos me habitam. Síria, Marrocos, Mauritânia. Três vozes que me ferem, inapeláveis.
O raso e o profundo se convertem mutuamente no deserto de areia. Até as dunas não passam da dinâmica interna do Mesmo. Altura provisória. Ondulação.
Deserto. Desejo. O corpo do céu. Toda a extensão moveu-se para os sonhos. O timbre dessas vozes me descentra.
Cruzar o deserto é como habitar o lado escuro da metáfora. A potência da potência. Tudo e nada.
Medir o índice subjetivo dos trânsfugas que acorrem ao deserto.
O deserto como ponto de encontro. O deserto como ponto de fuga.
A solidão de um casto criminoso. Ou o pecado de virgínea solidão?
Nenhum deserto é vazio. Nenhuma solidão, solitária. Nem mesmo a morte foge à inscrição da história.
A impossível transição do deserto rumo ao Nada.
O deserto dos místicos. O deserto dos santos. O deserto de ladrões e assassinos. Terra de não-lugar. Sonho de transumância.
O deserto é desejo. Não possui geografia a aspiração de habitá-lo. O deserto não é o infinito em ato. Se muito, um infinito potencial.
Pensar o deserto e desejá-lo. Fome de libertação. Um mundo entre realidade e sonho: α-mundo. Assim, enquanto houver deserto, há esperança.
Andrógino o deserto: meridiana ambiguidade. O tempo, imóvel, lembra a eternidade. A parte e o todo permanecem indiscerníveis.
O desvio para o vermelho chama-se aqui desvio do amarelo alaranjado. Cada grão de areia, uma galáxia.
Como guardar a diferença na entropia?
Não há história capaz de abranger o deserto. Apenas o mundo marinho, estático e semovente, de Débussy.
Ninguém se afoga no deserto de pedra, conquanto é certo o naufrágio em deserto de areia. A redundância da paisagem. O vento como alma do Mesmo.
Contra o deserto, o princípio de individuação. Se água ou terra pouco importa. Porque o deserto um dia já foi mar.
Marco Lucchesi
Premiado poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor, sétimo ocupante da cadeira nº15 da Academia Brasileira de Letras.