É parte constitutiva da identidade do ser humano o elemento da festa. A festa interrompe o tempo cotidiano e introduz a diferença do ritual e da celebração, para marcar uma ocasião especial em que é preciso deixar a rotina e voltar os olhos para o extraordinário que irrompe no tempo cronológico.
Todas as festas são eventos pelos quais se entra em “outra” ordem de coisas, onde a fantasia, a imaginação e o desejo tomam lugar. Festejar, portanto, é reafirmar nossa condição de ser humano, é sublinhar o fato de que não somos guiados apenas pelos instintos e pelo kronos que implacavelmente passa. Festejar é demonstrar que temos algum poder sobre o tempo, transfigurando-o com o rito da comemoração e da celebração.
Em tempo de carnaval, mesmo fora de época como no feriado de 21 de abril, as reflexões acima se aplicariam. Somos instigados a refletir sobre o sentido e o objetivo da música e da dança, dos espetáculos cheios de luzes e cores, dos corpos desnudados e fantasiados em desfile, do samba na rua, de tudo que compõe os três dias que o povo espera com sofreguidão. Isso torna-se ainda mais importante no Brasil, país onde o carnaval ocupa lugar central no imaginário do povo. Chamado com justeza país do Carnaval, o Brasil parece que entra em câmara lenta no Ano Novo para só recuperar seu ritmo e dinamismo depois dos festejos momescos. E agora, com este carnaval adiado devido à pandemia, impressiona a adesão de muitíssimos foliões saudosos da festa que não puderam celebrar nos dois últimos anos.
Efetivamente, a maioria daqueles e daquelas que “brincam” o Carnaval conhecem pouco ou nada do seu sentido mais profundo. A primeira dimensão dos folguedos carnavalescos tem a ver com um tempo religioso, cósmico e sagrado, onde a Transcendência é que irrompe e transfigura o kronos. O antropólogo Roberto da Matta nos chama a atenção, em seu conhecido livro “Carnavais, malandros e heróis”, para o fato de o carnaval ficar suspenso entre o Advento (tempo ligado ao nascimento de Cristo que é celebrado no Natal) e os 40 dias da Quaresma, esse período de penitência e mortificação que visa à conversão (metanoia) e culmina com a celebração dos mistérios da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
De fato, é como se todo o ritual carnavalesco, tão apaixonadamente preparado e vivido pelo povo e que tantos milhões rende aos bolsos dos donos das festas e desfiles só deixasse brilhar seu verdadeiro sentido quando o silêncio da Quarta-feira de Cinzas se faz, com seu ritual das cinzas aplicadas em cruz sobre a testa dos penitentes acompanhado das palavras: Convertei-vos e crede no Evangelho. A quarta-feira proclama a morte de Cristo, agora assumida pela disciplina da Quaresma, que substitui os folguedos e a descontração carnavalesca.
O carnaval, portanto, não tem rosto próprio, já que sua identidade é dada por um outro tempo e uma outra ordem de coisas e de sentido. Figura – ainda seguindo Roberto da Matta – como um momento sem nome ou vez, escondido nas dobras de um calendário sagrado. Situado entre o nascimento e a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, a festa que é o reinado de Momo é efêmera como as alegrias e gozos imediatos. Assume e resume simbolicamente os momentos crísticos do Natal e da Páscoa. E a numerologia cristã dos três dias de que fala o Novo Testamento.
O carnaval é, portanto, um evento relativo. Com o brilho e o ruído que atraem todos os focos de atenção, na verdade está simplesmente resumindo algo de fulgor bem maior e duradouro: os três dias de folia se referem e encontram significação no mistério cristão, já que a festa carnavalesca nasce, agoniza e morre em três dias.
Sendo um evento sincrônico, repetitivo, prenhe de conteúdos cognitivos e afetivos, o Carnaval tornou-se e passou a ser um tempo social importante, fortemente ligado à experiência vital de uma sociedade, muito especialmente da sociedade brasileira.
Em uma leitura informada pela fé, mas aos olhos das Ciências Sociais, o Carnaval só pode ser compreendido no contexto da visão cristã de mundo. Carnaval e Quaresma – no calendário cristão que rege o mundo após a queda do Império Romano – opõem-se no ciclo anual por seus conteúdos sociais e religiosos, implicando comportamentos individuais e coletivos opostos. Porém, na verdade, encontram seu ponto luminoso e iluminador na pessoa de Jesus Cristo, Sol que nunca se apaga, Vivente por excelência, sobre quem a efemeridade das coisas não tem e poder.
A alegria do povo que vai às ruas fazer festa é bendita. É cura para as dores e catarse para as opressões vividas e padecidas. Assim foi esse carnaval extemporâneo, acontecido depois da Páscoa, mas onde se expressou uma alegria pascal após tanto luto e tanta morte, como as que assolaram o povo brasileiro nos últimos dois anos. Essa demonstração de alegria encontra seu paradigma no mistério que configura o cristianismo e sua esperança no amor que é mais forte que a morte.
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.