Começa hoje o Tempo da Quaresma. Junto, a Campanha da Fraternidade. Nas próximas semanas quero refletir um pouco sobre isso.
Mas, antes de falar do que é a Quaresma, quero pensar sobre o que ela NÃO É.
Quando eu era menino, Quaresma era sinônimo de medo. Havia fantasmas, almas penadas, demônios e mulas-sem-cabeça soltando fogo pelas ventas soltos pelas ruas.
(Não me perguntem onde ficavam as ventas da mula, se ela não tinha cabeça).
Havia jejuns e a carne sumia do cardápio (para quem podia comprar carne, claro).
Bebuns faziam promessa de não entornar a marvada durante aqueles quarenta dias. Na verdade, estavam tomando distância para o porre do sábado de Aleluia. O mesmo valia para chocólatras, doceiros e outros glutões que até hoje cumprem a abstinência de carne comendo uma lauta peixada ou bacalhoada.
Que sacrifício…
Mas o auge era a Semana Santa, com suas rezas, velas e procissões (que a gente chamava de “perseguir o santo”). Ô falta de respeito!
Nas igrejas, as imagens eram todas cobertas com um pano roxo, o que aumentava o mistério lúgubre daquele homem torturado e ensanguentado, pregado na cruz.
Por causa daquele crime, nas pregações dos padres dava até pra sentir o calor que subia das profundas, onde os pecadores queimavam, no fogo do inferno.
Pois é de lá, das profundas, que veio essa história…
O fogo do Inferno
Dona Antônia se aproximava dos cem anos e dava por cumprida sua missão aqui na Terra. Filhos criados, netos e bisnetos já encaminhados, a vida começou a passar devagarinho à frente de sua vista miúda. Foi vindo uma canseira, uma preguiça imensa em ter que esticar os dias cada vez mais longos. Decidiu que era hora de abrir vaga para os mais novos e passar desta para a melhor.
Mas, ao invés de encontrar paz e descanso na perspectiva do eterno repouso, o que brotou foi o medo terrível de uma ameaça que a acompanhava desde a longínqua infância: O FOGO DO INFERNO!
Era como se todos os sermões do Monsenhor Juvenal, mais as ameaças de dona Íris, no catecismo, tivessem saído da neblina do tempo e viessem assombrar como fantasmas à pobre dona Antônia. O pior é que a velhice, se limita braços, pernas, olhos e ouvidos, fechando portas para a realidade do aqui e do agora, deixa solta e até alimenta ainda mais a imaginação. A quem não pode mais andar, correr, ver, ouvir e até falar, resta o lembrar e o imaginar…
E nas lembranças e na imaginação de dona Antônia vieram todos os pecados (ou o que ela classificava como tal) de sua longa vida. Ao lado de cenas e personagens do passado surgiam o remorso e o medo, avivados pelo fogo do inferno. Não havia escapatória, dona Antônia estava frita, e o que é pior, por toda a eternidade!
Quem primeiro percebeu o drama foi Maria, a empregada, que era quem tinha mais paciência de ouvir os queixumes de dona Antônia. A parentada, ao saber da história, primeiro achou graça. Só mesmo caduquice, onde já se viu, dona Tininha no inferno? Vai converter o capeta! Mas logo viram que o caso era sério. Dona Antônia sofria e se agoniava com o medo que a devorava.
Tio Haroldo era médico, o único dos filhos que se formara doutor, e foi chamado para resolver a questão. Do alto do seu diploma diagnosticou:
“Bobagem mamãe, inferno é aqui mesmo, este seu medo é besteira…”
“Vade retro, Satanás, não venha me enrolar com essa conversa que ainda não cheguei em sua casa! ”, gritou dona Antônia, escondendo-se sob o cobertor depois de expulsar o tio Haroldo como se fosse o próprio demo.
Carolina, uma das netas, estudante de Comunicação, tentou explicar que o inferno era uma invenção dos padres para manter os fiéis sob controle. Levou uma bengalada na testa.
Em dona Antônia o medo estava agora misturado com a raiva, o que já era um outro pecado a carimbar seu passaporte para as profundas. A casa virou um inferno. Ninguém mais vivia em paz e dona Antônia não morria em paz…
Esgotadas todas as tentativas domésticas, resolveram apelar para a Santa Madre Igreja. Chamaram o Padre Candinho, santo homem, para abrir à dona Antônia as portas do Paraíso. Ele veio munido de sermão, bênção, água benta, confissão, unção, comunhão, todo o arsenal capaz de garantir uma vaga à direita de Deus Pai.
Dona Antônia agarrou-se àquela tábua de salvação. Passou a vida a limpo. Lavou e enxaguou a alma no ouvido de Padre Candinho. Confissão de mais de duas horas pois, além da dificuldade de se fazer entender, depois de aposentada a dentadura, eram noventa anos de pecados a apurar…
No finalzinho, quando Padre Candinho já engatilhava a absolvição plenária que apagaria o fogo do inferno, dona Antônia arregalou os olhos apavorada e disse:
“Tô perdida! Tem um pecado que Deus não perdoa. Li na Bíblia. Pecado contra o Espírito Santo não tem perdão. Não tenho salvação…”
E dona Antônia foi buscar lá na sua meninice a lembrança de uma travessura que custara a vida de uma pobre pombinha. Tininha, levada, resolveu brincar com a ave como se fosse uma peteca. A coitada virou paçoca. Dona Eulália, sua mãe, ralhou e prescreveu castigo. “Onde já se viu tamanha maldade com o bichinho? Quando morrer, Deus castiga”!
Quando morrer, Deus castiga…
A frase ficou gravada nos labirintos da memória como uma maldição e voltava agora, condenação última, definitiva e sem perdão. Dona Antônia matara um parente do Espirito Santo e seria inapelavelmente frita nas chamas eternas!
A paciência do Padre Candinho já estava derramando pelas beiradas. Num último esforço, ele reuniu todos os argumentos teológicos aprendidos no seminário, testados e aprovados nas paróquias, nas centenas de aulas de catecismo e sermões do seu longo sacerdócio, para explicar à dona Antônia que Deus não castiga ninguém, não é um carrasco vingativo, nem um juiz duro e inflexível. Deus não trabalha na polícia!
Ele é um Pai amoroso que perdoa e acolhe a todos os seus filhos, mesmo os mais pecadores, que afinal somos todos nós. E além do mais, acrescentou o Padre. Candinho, vermelho como um pimentão, “o Espirito Santo não é parente de nenhuma pomba! Pombas”!!!
Tudo inútil. Dona Antônia se entregava aterrorizada à maldição que a acompanhara por toda vida: o fogo do inferno a esperava!
Padre Candinho já ia desistindo quando uma ideia lhe iluminou o rosto. Correu na Bíblia, folheou, folheou e localizou o trecho que procurava.
“Dona Antônia, a senhora está salva”!
“Salva o quê, Padre. Candinho, eu tô é fudida” disse dona Antônia, já apelando para a ignorância e, em nome da caduquice, falando um palavrão, coisa que nunca fizera em toda a sua vida, ainda mais na frente de um padre, o que, agora, condenada como estava, não ia alterar muito a temperatura das fornalhas infernais que a aguardavam.
“Não, dona Antônia, tá aqui na Bíblia, Mateus capítulo 24, versículo 51, aqui diz que no inferno tem choro e ranger de dentes… a senhora não tem dentes, dona Antônia, não vai poder ficar no inferno!!!”
Dona Antônia aprumou-se na cama e com os olhinhos miúdos tentava ler o trecho que Pe. Candinho apontava com o dedo. Com muito custo soletrou o versículo salvador.
Dona Antônia não teve dúvida. Reuniu a parentada, despediu-se de todos, fez as recomendações de praxe e acrescentou uma, especialíssima:
Não me enterrem de dentadura!!!
Aí, deitou-se de novo, virou pru canto, deu um suspiro profundo, sorriu as gengivas, morreu e foi pru céu…
Escrito em março de 1993
Atualizado em fevereiro de 2021
Eduardo Machado
Educador, Escritor, apaixonado pelo ser humano, um católico que tenta, cada dia mais, tornar-se cristão.