O Teatro Municipal do Rio me conquistou na juventude. Parte da minha vida se divide em antes e depois de alguns concertos e óperas. Uma espécie de memória afetiva prende-me àquele território, na forma de protesto ou entusiasmo, recusa e adesão, jamais indiferente às suas temporadas. Estudava as partituras ao piano, depois de acabar com os discos de vinil de tanto ouvi-los.

A história começa no final dos anos setenta, desde quando assisti a Franco Zeffirelli ensaiar a “Traviata” à montagem de Sérgio Brito para o “Macbeth” de Verdi, em 2005, e prossegue aos dias de hoje. Como não lembrar minha primeira “Tosca”, Grace Bumbry, e Franco Bonisolli, clamando às armas no “Trovatore”, ou Paulo Fortes em “O Guarani”, cujo ré final de sua ária parecia não ter fim? A lista é enorme e, com o passar do tempo, abriu-se a outras salas. Mas o Municipal me arrebatou como primeira pátria: nos canhões de luz de “Tristão e Isolda”, dirigido pelo neto de Wagner, e na estreia de “O Sargento de Milícias”, de Francisco Mignone, permeado de modinhas, lundus e sarambeques.

Saí do Municipal e busquei quanto me fosse possível sobre Mignone. Deslumbrado com a “Festa das Igrejas” e o monumental “Maracatu do Chico Rei”, cujas notas reproduzo mentalmente. Raros compositores podem rivalizar com sua cultura musical, a pesquisa intensa e a fulgurante intuição de sua obra. Poucos se mostraram tão livres, inquietos e produtivos, tocado pela série dodecafônica e pela música de vanguarda, como resulta de suas últimas entrevistas, assim como pensava a música popular, doublé de Chico Bororó.

A excelência de Mignone interessou o violão e o piano, música de câmara e orquestra, canções e obras corais, a missa e a ópera. Em suas páginas nos deparamos com uma dialética da construção e da desconstrução musical, mais inclinado aos poetas que aos virtuoses, tendo a expressividade como norte, assim como nas páginas de Villa-Lobos, tão próximos e distantes um do outro, naquela força indomável que Mignone definiu em Villa como “genial pelo que a música dele nos ilumina, nos força, nos sangra em nossas transitoriedades”.

Um diálogo das vozes plurais de nosso povo com a música do Ocidente levou Mignone a penetrar camadas geológicas profundas de nossa tradição. Mário de Andrade teve papel fundamental, como sabemos. E não deu por encerrada a pesquisa das vozes de nosso país, com suas belíssimas “Valsas de Esquina”, aberto às novas gerações, como um Claudio Santoro, um Guerra-Peixe e um Camargo Guarnieri.

Devemos comemorar os 120 anos de Mignone, pois através de sua obra, tornou-se, na companhia de Mário de Andrade, um dos grandes intérpretes do Brasil no século XX, uma herança fundamental. Mignone é uma luz nesses dias escuros em que se perde a perspectiva de nossa cultura, quando teatros e cinemas se transformam em igrejas, quando o país quase desaparece do horizonte do pensamento.

 

Marco Lucchesi
Premiado poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor, sétimo ocupante da cadeira nº15 da Academia Brasileira de Letras.