Provocado pelas reflexões de um amigo filósofo de Belo Horizonte, Ricardo Fenati, resolvi escrever alguma coisa a respeito da presença mística em Luiz Felipe Pondé. Tenho uma rica e longa experiência de amizade com esse singular pensador. Juntos partilhamos a experiência dos Seminários de Mística Comparada, que se realizam a cada ano na cidade de Juiz de Fora, desde o ano de 2001. Não é tarefa fácil captar a dinâmica de seu pensamento, pontuada por tantas nuances e inusitadas provocações. Aporias e oxímoros pontuam esse caminho reflexivo, conjugado por pessimismo e sobrenaturalidade; nihilismo e alegria; tragédia e generosidade. Na orelha de um de seus clássicos livros, O homem insuficiente (2001), Pondé dá o toque de sua perspectiva: “Uma espiritualidade da agonia, que toca Deus através da condição insuficiente enquanto abertura para a transcendência”.

Como dizia o pensador de tradição judaico-romena, Lucien Goldmann, “a história do problema é o problema da história”. Como caminho de aproximação ao complexo pensamento de Pondé, há que recorrer à sua história, ao processo de sua formação. Sua trajetória vem marcada por ondulações, que começam na medicina, desdobrando-se em seguida na psicanálise e na filosofia. Ele sublinha que já em sua primeira formação, na medicina, tomou consciência da fragilidade do ser humano, aprofundada em seguida com seus estudos de psicanálise freudiana. Com a reflexão filosófica esbarrou em Nietzsche e a sedução do ceticismo. Mas também com Pascal, que acabou dando formatação teórica à ideia de “homem insuficiente”, ou ainda de um ser humano “rasgado pela transcendência”.

Pondé foi sempre seduzido pela tradição reflexiva de corte religioso, que envolve diversos pensadores que vão de Agostinho a Berdiaev. Há também a vertente judaica, de sua tradição familiar, que abre importantes veias em sua concepção filosófica. Vale lembrar o influxo de livros como o Eclesiastes e o livro de Jó. Em sua obra sobre Dostoiévski, Crítica e profecia (2003), dizia: “A chamada filosofia religiosa ´pessimista`, de autores como Agostinho, Pascal, Lutero, Kierkegaard, Dostoiévski, Berdiaev ou Barth, entre outros, é uma tentativa de romper, em vários momentos da história ocidental, com a ilusão naturalista que implica o esquecimento da presença ativa do Transcendente no homem”. E esta visão, curiosamente, aproxima-se de um “determinado ceticismo antropológico” que opera fora do circuito religioso.

É nessa “atmosfera pessimista” que circula Pondé e que atua o seu pensamento. Há uma preocupação constante em afirmar a “disfuncionalidade do ser humano” quando distanciado do Mistério de Deus. O autor nunca driblou o “drama humano” ou evitou o “asfixiante subsolo” do tempo cotidiano. Afirma nunca ter temido o nihilismo, por o conhecer bem e por dentro. Reage, sim, contra certa “tecnologia da alegria” ou certo “fetiche da felicidade” que acabam por deslocar o homem de sua situação de impermanência ou condição de insuficiência. A seu ver, a dinâmica que conduz à verdadeira alegria implica em atravessar a melancolia por dentro e romper com a ilusão naturalista.

Com o aporte do livro do Eclesiastes, Pondé encontra um importante instrumento para adentrar-se no “drama humano”. Acredita que esse livro revela-se fundamental para “relativizar a arquitetura íntima do sucesso da modernidade”. É um livro bíblico que vem lido na festa da colheita, e justamente para lembrar a condição de impermanência do humano, de sua vanidade e de sua absoluta dependência de um Mistério que a tudo ultrapassa e vela. As convicções de uma “paixão antropológica” são também relativizadas por pensadores como Agostinho, Pascal, Kierkegaard e Barth. Para Pascal, como lembra Pondé, “a suficiência da natureza implica o desaparecimento do Sobrenatural, daí o pavor pascaliano diante de um universo sem Deus”. Semelhante orfandade vem pontuada por Kierkegaard, ao lembrar que o ser humano é tecido de angústia, e que traduz simultaneamente o nada de sua constituição e a “liberdade infinita” que o aguarda.

Seguindo uma agenda descrita por Barth em sua Carta aos Romanos, Pondé reitera a ideia de que o ser humano não pode jamais esquecer o “seu justo lugar no mundo”. Isso faz parte de “toda boa espiritualidade”, essa consciência de que o mundo “não cessa de ser mundo” e de que a presença do Totalmente Outro acontece como dado novo, inaudito e inesperado. E esse Outro, novidadeiro, traduz não uma resposta às perguntas humanas, mas uma “crise” de todas as perguntas. Com Barth se dá uma radical crítica ao mundo liberal, e sua pretensão de esplêndida continuidade entre o humano e o divino.

Há uma tenaz resistência de Pondé à pretensão de uma modernidade autonomista, expressa, por exemplo na obra de um Pico della Mirandola. A exaltação da dignidade da natureza humana. Em linha de descontinuidade com o pessimismo agostiniano, e seu combate contra “as formas embrionárias” de uma paixão antropológica, o filósofo renascentista italiano propõe uma definição mais atrativa e otimista do ser humano, que acaba abrindo caminho para uma “imanência humanista”, de certa forma ingênua. Para Pondé, o humanismo de Pico della Mirandola condena o ser humano a uma “horizontalidade naturalista” que acaba por dissolver, a seu ver, a devida relação do humano com o divino, suscitando a ideia de uma “suficiência da natureza humana”.

Essa modernidade, enraizada nesse “otimismo naturalista”, foi toda tecida para servir ao pequeno e autoritário “eu”, do sujeito que se firma na busca de produtividade, de sucesso, de saúde, de dinheiro, de autoestima e beleza. Desse “eu falante” que “inunda o mundo com seu ruído”. Na contra-mão dessa afirmação do pequeno eu, é que se firma a mística. Como indicou Pondé, em artigo sobre “a espiritualidade das pedras”, a rica literatura espiritual, seja do oriente ou ocidente, “há muito compreende o ridículo do culto ao ´eu` (…). Conceitos como ´aniquilamento` (anéantissement, comum em textos franceses entre os séculos 14 e 17), ´desprendimento`(abegescheidenheit, em alemão medieval) e ´aphalé panta` (grego antigo) descrevem exatamente esse processo de superação da obsessão do ´eu` por si mesmo”.

Foi durante o periodo de aprofundamento do pensamento de Pascal, na França – contemplado com uma bolsa sanduíche – , que Pondé fez seus primeiros contatos com a mística. E relata o ocorrido numa entrevista publicada na revista Sacrilegens, do PPCIR-UFJF (2006): “O que aconteceu comigo e o que me levou a estudar mística foi porque eu comecei a ter aquilo que a tradição chama de visitas de Deus. Eu comecei a ter experiências místicas. De uma hora para outra eu comecei a perceber determinadas coisas, ou tomar consciência, desde o começo de uma forma muito clara”. Foi a partir daí, que começa sua abertura ao tema, e lançou-se aos estudos para poder saber o que estava acontecendo com ele.

A mística vinha em reforço à sua crescente compreensão de que o ser humano não é “axis mundi” (o eixo do mundo), e de que o descentramento de si traduzia um caminho novo, de gratuidade e de abertura para a verdade última da vida. Já tinha intuído isso antes, com seus estudos de Agostinho e Pascal, no sentido da percepção da “disfuncionalidade humana” quando deslocada da sua relação com o Grande Mistério. A mística veio apenas reforçar e radicalizar essa sua compreensão. Com o aporte de importantes místicos como Eckhart, as beguinas e outros da tradição judaica – como A.Heschel, foi se apercebendo da presença de uma Misericórdia que acolhe e que fala. Num de seus mais lindos textos, “No Sinai”, publicado originalmente numa antologia de mística e poesia da Revista Poesia Sempre (da Fundação Biblioteca Nacional – 2009), Pondé fala dessa sua mudança de perspectiva: “A passagem entre a condição de ateu e a de não-ateu (não sou propriamente religioso) se deu assim como quem sai de casa num dia de sol e é apanhado por uma tempestade tão concreta como a chuva”. Mas só foi aprender a nomear sua substância quando recorreu à tradição, desvendando então o significado do que os místicos nomeiam como misericórdia. E continua: “Quando olho à minha volta, vejo esta estranha misericórdia sem causa escorrer pelo céu e, por alguma razão que desconheço, o cético e trágico que sou é obrigado a contemplar isso contra todas as faculdades intelectuais e volitivas que me constituem”. Relata que passa então a ser “constantemente visitado” por essa Presença, tomado pela “sensação de que o mundo é sustentado pelas mãos de uma beleza que é também uma presença que fala”.

Novos horizontes se abrem com o universo místico, como a consciência viva da “bondade de Deus”, de sua gratuidade e generosidade. Uma consciência que povoa o mundo interior de uma alegria distinta, que é reconhecimento do dom de um Mistério que nos arranca do próprio nada. Pode então acolher a compreensão de uma graça que também envolve a abraça o “princípio da insuficiência ontológica da criação”, mas que aponta para algo que é puro dom. Sublinha em outro lugar que “nada é mais forte do que a graça para iluminar a agonia do pecador para si mesmo”.

 

Faustino Teixeira
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.