O líder indígena Davi Kopenawa Yanomami, 64, costuma ensinar que embaixo da terra estava escondida a xawara. No saber Yanomami, a xawara representa todos os males enterrados pela Terra Mãe ao criar a humanidade. A busca do homem branco por riquezas, porém, liberou o que estava trancafiado, iniciando a destruição do planeta e propagação das doenças, como a malária e a covid-19.
A ciência e os Yanomami sabem que o homem pode desencadear doenças ainda escondidas na floresta, muitas com potencial pandêmico. Então, qual a diferença entre os dois tipos de conhecimento? O questionamento criou um marco para o saber científico no país.
Em dezembro, Davi foi anunciado como membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC). O grupo fundado em 1916 reúne pesquisadores em 14 áreas de conhecimento, como a matemática, biologia, física, química, ciências sociais e biomedicina. Por unanimidade, os membros da academia reconheceram que o líder Yanomami domina saberes tão eficazes e empíricos como qualquer cientista tradicional.
“Normalmente, nossos membros são doutores, professores em instituições de pesquisa e com muitas publicações em revistas científicas”, explica o antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Ruben Oliver, um dos diretores da Academia Brasileira de Ciências, responsável pela indicação.
Davi é líder xamânico e co-autor do livro “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” (Companhia das Letras), uma mistura de memória, cosmologia e constatação sobre o fim do mundo. A obra foi escrita a partir de relatos de Davi ao antropólogo francês e co-autor Bruce Albert.
É um dos registros mais importantes sobre a cultura, religião e história de um povo indígena já feitos, onde estão descritas fauna e flora locais, as práticas xamânicas, o uso da yãkoãna e o extermínio provocado pelo consumo e ânsia de produção do homem branco, especialmente os garimpeiros que Kopenawa chama de “comedores de terra”.
O porta-voz Yanomami também deu palestras em universidades internacionais como a de Harvard, nos Estados Unidos, e no ano passado recebeu o Right Livelihood Award, considerado o “Nobel Alternativo”. No início dos anos 90, tornou-se ainda mais conhecido após a criação da Terra Indigíena (TI) Yanomami, demarcação que abriga oito povos, mais de 25 mil indígenas – parte em aldeias, parte isolada. O território indígena dos yanomamis é um dos maiores e mais importantes do país, mas está sob ameaça (leia mais abaixo).
A Academia Brasileira de Ciências não aceita candidaturas e os atuais membros indicam o currículo dos novos integrantes. É uma organização apartidária, mas que funciona como um bloco influente no debate científico do país desde sua origem. Em 1925, a instituição recebeu a visita de Albert Einstein na sede da ABC, no Rio de Janeiro. Na ocasião, o físico foi nomeado membro correspondente, categoria reservada para cientistas estrangeiros.
Os acadêmicos se deram conta que o Brasil tem uma responsabilidade moral em relação às gerações originais que já estavam aqui, mantiveram a terra e foram em grande parte dizimados. Nós descemos do pedestal: nós sabemos muitas coisas, mas há outros saberes com conhecimento
Ruben Oliver, professor da UFRGS e diretor na Academia Brasileira de Ciências
O líder indígena não tem currículo lattes, não leciona em universidades e tampouco assina artigos científicos para preencher os requisitos da ABC.
Sua nomeação foi justificada pelo conhecimento de Davi sobre o equilíbrio com a natureza, dos métodos de cura a partir das plantas medicinais, do respeito à fauna e flora brasileiros e pela defesa do futuro do planeta. “É um conhecimento que poderíamos chamar de científico, o que é uma questão secundária. O que sabemos, de fato, é que o que ele sabe funciona e é harmonioso com o planeta”, diz Ruben.
O diretor usa como exemplo Henry Ford, criador de veículos que investiu em uma fábrica na Amazônia, em 1928. A ideia do inventor do “Fordismo” era plantar seringueiras de forma ordenada e ter a própria fonte de borracha, mas as árvores crescem de forma selvagem na floresta amazônica. A tentativa de delimitá-las provocou a invasão de parasitas, o que adoeceu e matou funcionários com a propagação de doenças.
“O cara era um gênio do capitalismo industrial, mas foi totalmente derrotado ao achar que poderia levar o conhecimento para outro lugar. A Amazônia tem uma lógica própria e é entendida pelos indígenas. Hoje é consenso que nós, cientistas, sabemos que eles é que têm o que nos ensinar, diz Ruben.
A nomeação de Davi também tem um significado político, afirma o cientista brasileiro. Em 2020, a Terra Indígena Yanomami foi invadida por cerca de 20 mil garimpeiros, gerando milhares de contaminações pela covid-19. Até o fim de novembro, a Rede Pró-Yanomami contabilizou 1.312 casos confirmados da doença e 11 mortes causadas pelo novo coronavírus.
De acordo com Instituto Socioambiental (ISA), entre 2018 e 2019, houve um aumento de 1.600% de área desmatada no território, em comparação aos dois anos anteriores. “Achamos importante nomeá-lo em um momento em que o meio ambiente e os próprios indígenas correm risco”, diz o diretor.
Resistência ao saber originário
A indicação não gerou resistência entre os membros da Academia, mas nem sempre o ambiente acadêmico foi tão acolhedor ao saber originário
Há dez anos, a mestra em geografia Márcia Wayna Kambeba ficou entre os cinco escolhidos para um mestrado na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), mas uma professora resistiu a orientá-la em sua tese sobre a história do povo Kambeba. “Parecia que os pesquisadores tinham medo dos indígenas roubarem o lugar deles e uma professora disse que meu conhecimento era ‘incipiente'”, relembra.
Hoje, Márcia produz livros para ensinar os saberes indígenas nas escolas. “O indígena sabe que a pesca melhora com a ‘luarada’. Algum cientista sabe o que é o termo ‘luarada’? É um ponto específico de movimentos lunares”, explica. “Muitos remédios ainda são feitos de nossas plantas e dominamos o látex antes dos europeus”, diz. “Por isso digo que o conhecimento originário é empírico e que nossos anciãos e pajés são doutores por excelência”, diz.
Para Marcos Wesley, antropólogo do Isa com mais de 20 anos de trabalho direto com os povo Yanomami, um pajé e um médico podem atuar juntos para a cura de um enfermo, em uma harmonia entre as técnicas. “Davi valoriza muito os conhecimentos dos brancos, mas a questão defendida por ele sempre foi fazer os brancos valorizarem o conhecimento dos indígenas”, explica.
Para o antropólogo, a indicação de Davi para a Academia questiona a linha eurocêntrica da ciência. O antropólogo chama o xamã de estudioso de uma “etnografia reversa”, como um mapeador da cultura e dos desígnios dos brancos. “A percepção do Davi foi a de mostrar para o mundo que o ser humano não é maior do que os outros seres vivos, uma pretensão equivocada dos brancos que nos leva à destruição”, diz o antropólogo.
Um membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) participa de um encontro anual de ciência, onde cientistas debatem sobre o futuro do planeta. Davi será um “membro colaborador”, categoria que nomeia “personalidades que tenham prestado relevantes serviços à ABC ou ao desenvolvimento científico nacional”.
A nomeação acontece em janeiro, mas a cerimônia deve ser realizada no segundo semestre devido à pandemia. O líder Yanomami está em isolamento social na aldeia onde vive, por isso nossa reportagem não conseguiu contatá-lo. A comunicação é feita somente por rádio. Davi ainda não foi informado sobre a nomeação histórica.
ECOA – UOL