“O negro e outras camadas não-brancas não foram, assim, incorporados a esse proletariado incipiente, mas foram compor a grande franja de marginalizados exigida pelo modelo do capitalismo dependente que substituiu o escravismo”, escreve Ricardo Corrêa, especialista em Educação Superior e Tecnólogo industrial.
Se você ficar calado sobre sua dor, eles o matarão e dirão que você gostou.
− Zora Neale Hurston
Eu sou daqueles que incomoda quem não dá a mínima importância para a situação do negro no Brasil. Converso com amigos e desconhecidos. No boteco e na padaria. Na praça e no transporte público. Não importa o ambiente que eu esteja, as questões raciais e a desigualdade social são assuntos que priorizo na construção de reflexões junto às pessoas. E mesmo acontecendo algumas situações conflituosas com quem nega o racismo e defende a meritocracia, não desisto do debate. Normalmente, as pessoas privilegiadas (brancos) usam argumentos desonestos para defenderem-se, além de ignorarem que os seus privilégios dependem do sofrimento dos negros – lógica basilar para a interpretação do racismo neste país.
Para o psicólogo Dr. Bobby Wright (1984) os racistas são psicopatas, pois estão em constante conflito com os negros, são pessoas insensíveis, incapazes de sentirem culpa, completamente egoístas e desconsideram totalmente os nossos direitos. [1] Normalizaram as condições de privilégios como se fosse algo natural. Ignoram que a realidade é o resultado da intervenção do homem na construção e reconstrução das condições de sobrevivência, e organização política da sociedade. Nesse sentido, afirmo que o racismo estrutural é uma estratégia deliberada dos que estão nos espaços de decisão, e produto de um processo histórico; logo, somente entenderemos o presente, se olharmos para o passado.
De um lado, os negros egressos das senzalas não eram incorporados a esse proletariado nascente, por automatismo, mas iriam compor a sua franja marginal, de outro, do ponto de vista ideológico, surgia, já como componente do comportamento da própria classe operária, os elementos ideológicos de barragem social apoiados no preconceito de cor. E esse racismo larvar passou a exercer um papel selecionador dentro do próprio proletariado. O negro e outras camadas não-brancas não foram, assim, incorporados a esse proletariado incipiente, mas foram compor a grande franja de marginalizados exigida pelo modelo do capitalismo dependente que substituiu o escravismo. (MOURA, 1988, p. 65)
As vozes negras precisam ser utilizadas como instrumento de luta. Não podemos calar-nos diante da violência (moral e física) que atinge a população negra. Estamos aprisionados ao sofrimento, e há muitos exemplos nessa direção. Basta colocarmos os pés dentro dos estabelecimentos comerciais para nos preocuparmos com os seguranças. Isso porque existem pressupostos racistas de que os negros são criminosos. Daí, somos perseguidos e corremos o risco de os seguranças partirem para a agressão (e até assassinato!). Quando ocorre enquadros policiais o perigo é o mesmo. Uma realidade que confirma as palavras de Luiz Gama (2011) “em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime”.
Nas entrevistas de empregos, a nossa qualificação profissional e/ou acadêmica é ignorada, simplesmente, por causa da cor da nossa pele. Até um branco medíocre tem vantagem sobre nós. Existe também o racismo na televisão que, através de diversos programas, reforça os estereótipos e hiperssexualizam os corpos negros. Eu tenho a certeza de que não construiremos modos de sociabilidade − sem o racismo atravessando as relações − se ignorarmos o papel nocivo dos meios de comunicação na construção da imagem das pessoas negras. A televisão influencia o aparelho mental das pessoas que consomem seus conteúdos, e, consequentemente, naturalizam os aspectos negativos atribuídos aos negros. Ao final, subjuga-se o outro por conta da sua raça, no sentido sociológico, e cria comportamentos em que o branco fecha-se em sua brancura; e o negro em sua negrura. (FANON, 2008).
Outro exemplo é a pandemia da COVID-19, que escancarou as mazelas da desigualdade social. A tragédia sanitária atingiu, sobremaneira, as populações negras, e outras não pertencentes aos estratos privilegiados da sociedade. Por conta do racismo estrutural, milhões de corpos negros foram às valas, e os que sobreviveram foram empurrados sob os escombros do que restou da sociedade. Isso confirma o que acontece, historicamente, em uma lógica que compreende o fator racial intrínseco a violência capitalista. Desse ponto de vista, o racismo não sobrepõe outras formas de opressão, mas é potencializado dentro da dinâmica capitalista, a depender do contexto e dos elementos associados; resultando em múltiplas adversidades e brutalidades. Isso impossibilita-nos de listar todas as manifestações possíveis de ocorrer. O diagnóstico que podemos apontar é o racismo como uma opressão adaptável e que não perde os pontos nevrálgicos: exclusão social e aniquilação dos corpos negros. O professor Robin D. G. Kelley, comentando a obra “Black Marxism” (2000), explicou que o capitalismo e o racismo não romperam com a velha ordem, mas evoluíram dela para produzir um sistema mundial moderno de “capitalismo racial” dependente da escravidão, violência, imperialismo e genocídio.
Por fim, compreendo a necessidade de empreendermos lutas organizadas nos espaços políticos, institucionais e populares para destruirmos o sistema de violências subordinadas ao capital; mas, sem ignorarmos a importância dos comportamentos individuais que estimulem o debate racial na dinâmica das relações sociais. Não podemos correr o risco do que está expresso nas palavras da escritora e antropóloga Zora Neale Hurston (1891-1960). Jamais sofra calado. Negro!
Ricardo Corrêa – Instituto Humanitas Unisinos