Pesa um esquálido silêncio no coração do Rio. Nenhum sinal dos assassinos de Anderson e Marielle. Um silêncio corrosivo tornou infinito o labirinto da investigação. Houve quem tentasse incriminar a vítima, talvez para emprestar algum lastro aos mandantes. A iniquidade desferiu um tiro na memória ao buscar uma segunda morte, como se não bastasse a primeira, para depois enredar-se num mutismo mafioso.

O silêncio é uma pista incontroversa, um caso de autoacusação que sinaliza o mal de origem.

Anderson e Marielle permanecem mais vivos do que nunca. Marielle entrou na corrente sanguínea de nosso imaginário, na resistência de nosso povo, com seu nome escrito nos muros da cidade, tatuado no corpo de jovens, formando um eu plural e a compor um destino mítico. O sentimento de injustiça que atravessa o dia a dia das camadas populares encontrou em Marielle um espelho fatal e inclusivo, que gerou o mote “eu sou, porque nós somos”.

Os mandantes da morte de Marielle não imaginaram que haveria um abalo sísmico, uma visão orgânica, um sentimento de pertença indissolúvel.

Ninguém se iluda: a história não se resume a um teatro de marionetes. Quanto mais o tempo corre, os bastidores passam a primeiro plano e as sombras se iluminam. Os fios perdem vigor e os bonecos assumem uma impensável autonomia. Eminências pardas sempre deixam rastros, arquivos deletados cedo ou tarde podem ser recuperados. A hipótese da milícia e de suas ramificações adquire nitidez à medida que as respostas não chegam. Tempo excessivo para não saber. A mistura de incompetência e morosidade possui seus próprios limites.

O governo do estado do Rio segue com pés de barro fincados em terreno insólito, contaminado por uma corrupção sistêmica que devastou as finanças e corrompeu a moral, o sistema político e o próprio aparelho de estado.

Nesse ambiente lesivo, as milícias ocupam cargos no legislativo e no executivo, devoram e abalam o que ainda resta de nossos poderes locais. Possuem o domínio de amplo território e formam uma espécie de Estado dentro do Estado, com fortes finanças, embasadas no medo e na extorsão.

Precisaríamos de um choque de cidadania para a recomposição das forças democráticas, com o desmonte das células de banditismo endêmico, a retomada dos territórios desassistidos, e a ruptura destas núpcias entre a milícias e algumas parcelas de poder.

A morte de Anderson e Marielle revela um somatório de infortúnios. Há uma queda de braço entre a ordem legal e forças ocultas, e este aparente domínio da omertà torna-se mais ofensivo.

Há algo de podre no reino da Dinamarca. Sem o drama de Hamlet, em um cemitério desigual, mergulhamos no caos e na barbárie. E o nome dos mandantes permanece guardado a sete chaves.

Aumentemos a pressão para não sucumbirmos aos últimos fiapos de dignidade e senso republicano.

Somos todos Marielle.

 

Marco Lucchesi
Premiado poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor, sétimo ocupante da cadeira nº15 da Academia Brasileira de Letras.