Todos nós, batizados na Igreja Católica, sabemos que durante séculos os fiéis foram induzidos a obedecer, não a pensar. Autoridade e verdade coincidiam… Mas desde o Concílio Vaticano II, na década de 1960, a Igreja (e não necessariamente bispos e padres) passou a respeitar a autonomia da razão e das ciências.
Muitos temas-tabus que perduraram séculos na Igreja foram derrubados com o tempo. Ainda peguei o tempo da missa em latim, puro ato de fé, já que eu não entendia nada do que o padre rezava. E, ainda hoje, a doutrina oficial católica estabelece que, no matrimônio, o casal só pode ter relações sexuais se houver intenção de procriar. Meu professor de teologia moral comentava que isso não é bem um princípio teológico, e sim zoológico… Todas as pesquisas demonstram que nem 10% dos fiéis respeitam esse preceito, mesmo entre casais conservadores.
Já o tema da homossexualidade prossegue como tabu. Prova disso é a polêmica suscitada em torno da notícia de que o papa Francisco admite a união civil de casais homoafetivos. Foi o que ele declarou quando cardeal em Buenos Aires, em 2010, e em entrevistas concedidas em 2014 e 2017. Porém, a repercussão veio somente agora, por conta de um documentário sobre o seu pontificado. A poeira que a declaração levantou fez com que, na semana seguinte, o Vaticano declarasse que não foi bem isso que o papa afirmou no filme, que teria sido equivocadamente editado etc. etc.
Ora, todos sabem que papas são prisioneiros do Vaticano e, embora sejam monarcas absolutos, a Cúria Romana trata de controlá-los o mais possível, por considerar a defesa da instituição mais importante que a liberdade dos filhos e filhas de Deus.
No livro As bodas das semelhanças, John Boswell demonstra que o matrimônio homossexual, admitido na Igreja entre os séculos VI e XIII, era oficiado por sacerdotes e tinha a mesma validade do matrimônio heterossexual.
A partir do século XIV, a homossexualidade passou a ser um tabu moral, “pecado inominável”, “amor que não se atreve a dizer o nome”. A relação homossexual chegou a ser considerada mais perversa que assassinato, incesto e canibalismo.
Antes do ano 1000, não havia propriamente casamento religioso. Os noivos se declaravam marido e mulher diante da comunidade de fé e de Deus. Ainda hoje a doutrina da Igreja diz que eles são os ministros do sacramento do matrimônio, ao contrário do que muitos julgam, por atribuírem o protagonismo ao sacerdote. A bênção do padre é apenas um arremate à união do casal.
Na Idade Média, o amor não era o principal motivo da união de duas pessoas, embora pudesse existir, tanto que se aceitava o concubinato e era frequente o divórcio. Somente no IV Concílio de Latrão, em 1215, a Igreja assumiu o matrimônio como sacramento e passou a estabelecer regras canônicas à sua celebração.
Em antigos manuscritos litúrgicos gregos se encontram registros de matrimônios de casais homoafetivos na Itália, na ilha de Patmos e no mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai.
Na clássica obra de Boswell, 114 páginas reproduzem dezoito textos que comprovam a celebração do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo: modo de receber o sacerdote; posicionamento do casal; leituras e orações; hinos e salmos prescritos etc.
Alguém pode objetar que a Bíblia condena a homossexualidade. Ora, ela foi escrita em um contexto machista e patriarcal. Por que tanta insistência dos conservadores em destacar os únicos versículos de suposta condenação da homossexualidade (Gênesis 19,1-28; Levítico 18,22 e 20,13; Romanos 1,27) e fechar os olhos a tantas outras condenações?
Vejamos: Êxodo permite que um pai venda a filha como escrava (21,7) e prevê pena de morte para quem trabalhar no sábado (35,2). Levítico proíbe que se toque em uma mulher em seu período de “impureza” menstrual (15,19-24). E admite que se escravizem estrangeiros (25,44). Para o Levítico, comer mariscos é uma abominação (11,10) e proíbe de se aproximar do altar quem tem defeito na vista (21,20). Será que, hoje, não incorremos em ofensa a Deus por não respeitar tais preceitos bíblicos?
Não há base científica, ética ou teológica para afirmar que a essência da sexualidade humana é unicamente heterossexual. O matrimônio heterossexual não é, historicamente, o único existente, e não se deve erigi-lo em modelo único e obrigatório para todos.
Do ponto de vista ético, a sexualidade humana, seja ela hetero ou homossexual, não pode ser definida em função da procriação, e sim do amor que une duas pessoas que decidem ter um projeto de vida em comum, no qual se inclui ou não a procriação. Como afirma a Primeira Carta de João (4,7-8), “Todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus… porque Deus é amor.”
Frei Betto
Frade dominicano, jornalista graduado e escritor brasileiro. É adepto da Teologia da Libertação, militante de movimentos pastorais e sociais. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.