Um dos sambas de Nei Lopes, composto para a Escola de Samba Quilombos, fala em seus versos que ‘há mais de quarenta mil anos atrás a arte negra já resplandecia’. O lúdico desses versos me remete ao fato de que há mais de quarenta anos, em fevereiro de 1980 no Rio de Janeiro, foi fundada a Associação de Ex-alunos da Funabem – Asseaf e a arte que embandeirou aquela associação, foi o desejo de seus associados – a maioria jovens negras e negros, estigmatizados como “menor abandonado”- era o de buscar, por meio do associativismo, concretas oportunidades de vida pois que, as oferecidas pela Fundação Nacional do Bem Estar do Menor praticamente se encerravam quando os internos completavam 18 anos e eram lançados à sorte, semelhante à lógica trágica da Lei do Ventre Livre.

A Asseaf surgiu na esteira da reorganização da sociedade civil em fins de 1970, quando se instituíam as organizações não-governamentais, lideradas pela classe média de esquerda e setores progressistas das Igrejas Católicas e Evangélicas. Também nesse bojo surgiam as novas organizações do movimento negro, como o Movimento Negro Unificado – MNU, a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África – SINBA, e o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras – IPCN. Contudo, num cenário de tanta diversidade de instituições, nenhuma delas se detinha de forma programática às questões que afetavam a vida e os direitos de jovens negros, em conflito ou não com a lei, e seus destinos como pessoa humana.

O sentido político e o objetivo estratégico das organizações não-governamentais é o de confrontar o Estado e seu aparato, provocando que ele compra a sua missão constitucional. As organizações de caráter popular e princípios democráticos, se formam a partir de interesses comuns de grupos de indivíduos determinados em mudar situações impostas pelo status quo, que garante o estado da arte como imutável. Assim, todos somos iguais perante a lei, mas é necessário que o movimento social das mulheres interfira no estado da arte do Direito e crie a Lei Maria da Penha; que o Grupo Tortura Nunca Mais consiga, ao menos, resgatar a história de alguns do nosso povo, mulheres e homens, que foram mortos pela ditadura militar de 1964, embora os mortos pelos esquadrões da morte no mesmo período não caracterizem violência política; ou ainda que o Movimento Negro consiga, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, estabelecer o ensino obrigatório da história e da cultura africana e afro-brasileira.

Ivanir dos Santos e Togo Ioruba, então jovens sujeitos de formação política complexa, onde a religiosidade e o pragmatismo dialético determinavam suas ações, conseguiram legitimar uma Associação, reunindo toda sorte de gente, que vivia e viveu os destinos mais adversos. Tripla exclusão: preto, menor abandonado e ex-aluno da Funabem, que numa leitura vulgar não passavam bandidos. Ainda assim consta no estatuto da Asseaf: “desenvolver o espírito de fraternidade e ajuda mútua, assistência ética, material e profissional, que propicie a integração dos ex‑alunos da Funabem”.

Uma das ações de maior importância da Asseaf (continuada pelo CEAP) foi sua participação desde 1987, com outras organizações voltadas para a defesa dos direitos das crianças e adolescentes, nas discussões que viriam a culminar com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA em 13 de julho de 1990, que baniu da legislação brasileira o famigerado Código dos Menores, instrumento de natureza punitiva que teve vigência a partir de 1979, destinado tão-somente à criminalização de crianças e adolescentes negros ou pobres.

A Asseaf agregava diversos grupos sociais e culturais; mulheres negras, capoeiristas, poetas, músicos, artesãos, estudantes e militantes de esquerda, cuja pauta tratava das muitas questões que afetavam a comunidade negra, desde a precariedade das políticas públicas de saúde, educação e trabalho, até as ações letais do tráfico de drogas e das policiais militar e civil. As discussões passaram a ocorrer de forma sistêmica, uma vez por semana, e se percebeu a necessidade de produzir modos de ações que fossem além do denuncismo e que se caracterizassem como intervenção política de um grupo organizado.

De fins de 1987 a 1989, a Asseaf abrigou um grupo em torno de 25 militantes do movimento social que pensou e estruturou o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAP, fundado em fevereiro daquele ano, tendo como pilares estratégicos as macro funções definidas como defesa dos direitos humanos, promoção e desenvolvimento das mulheres negras, combate ao racismo, defesa dos direitos das crianças e adolescentes e a garantia da liberdade religiosa.

O racismo no Brasil tem dimensões epidêmicas, é estrutural, atingindo as instituições do Estado e da sociedade civil, manifesta-se com fortes componentes de barbárie, e se retroalimente de forma atávica – especificamente desde o Império até os dias da atual República – como uma patologia em constante evolução, inclusive produzindo a renovação de sua retórica coloquial e “científica”. Portanto, o CEAP tomou como propósito, sempre articulado com outros parceiros dos mesmos campos de interesses, intervir em determinados contextos a partir de análises criteriosas da conjuntura social, amparado por metodologias de pesquisas, coleta e tratamento de dados, gerando produtos e proposições que impactassem moralmente a sociedade, o parlamento nos seus diversos níveis, os gestores públicos e a comunidade internacional.

Das muitas violências que o racismo produz e que impactam danosamente a comunidade negra, o CEAP interveio por meio de denúncias, campanhas, ações, manifestações públicas e publicações de caráter educativo. Desde a campanha ‘Não matem as nossas crianças’, de 1991, que implicou na instalação de uma CPI no Congresso Nacional e muitas nos legislativos estaduais e municipais. Promovemos ainda ações de denúncia e o combate ao trabalho infantil, a intervenção contra o tráfico de mulheres brasileiras, o enfrentamento às políticas de esterilização em massa de mulheres negras e pobres, a formação de professores em educação para as relações etnicorraciais (Lei 10.639/03) e a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa.

Ao completar trinta e três anos de atividades, as contribuições do CEAP somaram para esse processo de construção de uma democracia plena em nosso país, mas não há ilusão quanto a necessidade de trabalho diuturno para garantir os direitos até aqui conquistados, desde os contidos na Constituição de 1988, aos garantidos por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, até os que precisaremos construir para suplantar as inesgotáveis e perversas artimanhas do racismo no Brasil.

Éle Semog