Num dos mais bonitos e sensíveis documentos do Concílio Vaticano II (1962-1965), sobre a Igreja no mundo de hoje (Gaudium et Spes), encontramos uma chave importante para entender o pontificado de Francisco: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1). A viagem de Francisco ao Brasil traduz maravilhosamente essa busca de sintonia com o tempo, de testemunho evangelizador, de compromisso com o outro e de abertura dialogal. O papa que em sua chegada ao país pede licença para acessar o Povo Brasileiro, conquistou, de fato, o seu coração. É um encanto e sedução generalizados, que não se reduz ao circuito da Igreja católica. Dizia em sua chegada que o objetivo de sua viagem era o de “alimentar a chama de amor fraterno que arde em cada coração”. Esse objetivo foi realizado com sucesso, e por várias razões: pelo carisma de Francisco, pelo seu sorriso despojado, pelo seu testemunho de humildade, por sua atenção e generosidade, bem como sua coragem de anunciar um jeito novo de ser Igreja. Mas também acrescentaria, talvez como um segredo maior, sua linda experiência de Deus. Trata-se de alguém que se deixa “surpreender por Deus”, pelo toque inusitado de seu amor, e isso se irradia como fragrância sedutora por todo canto.

Passos importantes de sua presença no Brasil já foram bem destacados, como a profética mensagem para a comunidade de Varginha, no complexo de favelas de Manguinhos. Ali pôde sinalizar que o traço de solidariedade é a grande lição que a gente simples do Brasil tem a oferecer ao mundo inteiro. E, curiosamente, foi esse o traço singular que envolveu a dinâmica das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e seu projeto de Igreja que ecoou por toda parte. Francisco busca resgatar vivamente essa lição.

Na continuidade de sua peregrinação ao Brasil, a data de 27 de julho fica também marcada com os traços de sua presença acolhedora e profética. Uma parte importante do dia dedicou sua fala aos ministros da Igreja católica, seja no início da manhã, em missa realizada na catedral metropolitana do Rio de Janeiro, como no almoço oferecido no Palácio São Joaquim. Nos dois espaços, o tema da evangelização ganhou um lugar de destaque. Em sua homilia durante a missa, Francisco sublinha os três aspectos que devem animar os ministros na sua tarefa de anúncio evangelizador: a consciência do chamado de Deus, o compromisso do anúncio do Evangelho e a promoção da cultura do encontro. Enfatizou a importância de um anúncio animado pela coragem e ousadia. Como bem sinalizou Paulo VI na Exortação Apostólica, Evangelii Nuntiandi, evangelizar é “tornar nova a própria humanidade” (EN 18). Assim também o entende o papa Francisco. Mas adverte que o “permanecer” em Cristo não significa ensimesmamento ou entrincheiramento eclesial, mas “um permanecer para ir ao encontro dos demais”.

No discurso mais longo de sua viagem, dedicado aos cardeais do Brasil, presidência da CNBB e os bispos da região, novamente esse tema da evangelização. Como de costume, faz recurso a uma passagem do evangelho – o episódio de Emaús ( Lc 24,13-15), para animar sua reflexão. Sublinha que hoje em dia há muitas pessoas que, como os dois discípulos de Emaús, encontram-se em dissintonia ou desafeição com a Igreja, seja na busca de “novos e difusos grupos religiosos”, seja numa vida distanciada de Deus. A passagem de Emaús serve como mote para uma reflexão mais ousada sobre o distanciamento eclesial da vida concreta das pessoas. Junto com essa consciência, a advertência em favor de um novo posicionamento:

“Serve uma Igreja que, na sua noite, não tenha medo de sair. Serve uma Igreja capaz de interceptar o caminho deles. Serve uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa. Serve uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos que, fugindo de Jerusalém, vagam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um cristianismo considerado hoje um terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido”.

O desafio que se apresenta nesse tempo atual, marcado por uma crise eclesial sem precedentes, é o de uma Igreja que se faz presença. Na visão de Francisco, urge uma “Igreja capaz de fazer companhia, de ir para além da simples escuta; uma Igreja que acompanha o caminho pondo-se em viagem com as pessoas”. Para Francisco, a solução não está numa Igreja encastelada mas numa comunidade que seja “capaz de aquecer o coração”. E isso exige sintonia com o compasso do outro, para além da lógica da eficácia: de “tempo para ouvir” de “paciência para costurar novamente e reconstruir”, de “saber sintonizar o passo com as possibilidades dos peregrinos, com os seus ritmos de caminhada”. Na noite anterior, ao discursar após a Via Sacra, esse tema já havia sido abordado, e de forma ousada, quando tratou da situação de tantos jovens “que perderam a fé na Igreja, e até mesmo em Deus, pela incoerência de cristãos e ministros do Evangelho”.

Ao discursar no Teatro Municipal para segmentos da sociedade civil e lideranças religiosas, no dia 27 de julho, o bispo de Roma volta a falar na “cultura do encontro” e o no desafio de um “diálogo construtivo”. O diálogo é a opção certeira contra a “indiferença egoísta” ou o “protesto violento”. E um diálogo que seja amplo, envolvendo partilha com as diversas gerações, com o povo, com as culturas e religiões. Não há saída feliz para o horizonte da humanidade a não ser pelo diálogo: “É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem uma vigorosa contribuição das energias morais numa democracia que evite o risco de ficar fechada na pura lógica da representação dos interesses constituídos”. Francisco mostra mais uma vez seu estado de atenção ao ritmo das ruas, às “energias morais” que animam a juventude brasileira em seus protestos em favor de uma sociedade distinta e de uma democracia em tom maior. Reconhece ainda que as tradições religiosas têm um papel importante na construção desse futuro de paz, e que também o Estado atua positivamente em favor de uma laicidade mediadora, ou seja, de uma laicidade “que sem assumir como própria qualquer posição confessional, respeita e valoriza a presença do fator religiosa na sociedade, favorecendo suas expresses concretas”.

Ao final do dia 27, em seu discurso durante a Vigília de Oração, o papa Francisco fala explicitamente nos protestos protagonizados pela juventude brasileira desde o mês de junho. Indica estar acompanhando com atenção toda essa movimentação em favor de mudanças no país. E sua palavra não é em favor de uma omissão da juventude católica, mas de incentivo à participação nas ruas: “Os jovens nas ruas, vocês têm de ser protagonistas, vocês têm de superar a apatia e oferecer uma resposta cristã para as inquietações sociais. Que se envolvam em um trabalho pelo mundo melhor. Não sejam covardes, se metam, saiam às ruas, como fez Jesus”.

A presença de Francisco no Brasil marca um novo tempo na vida da Igreja católica, que busca estar sintonizada com a “mudança de época”. No espírito aberto do Vaticano II, convoca toda a comunidade para um real aggiornamento. Imbuído da mesma sensibilidade de João XXIII, sublinha a ousadia de novos passos para a Igreja, contra todos aqueles “profetas de desventura”, que se fixam numa lógica de mera continuidade com o passado ou que buscam acentuar sua prática pastoral com o reiterado exercício do “não”: não mudar a fé da Igreja, não mudar a doutrina, não mudar a prática pastoral etc. Os jovens mostram com energia e vitalidade sua expectativa numa Igreja que se firma num fermento evangelizador que propicia mudanças, para além de uma Igreja que só consegue fornecer “palavras seguras” mas desencantadas.

O que Bergoglio nos apresenta não é apenas um “estilo diferente” de exercício papal, mas “um outro modelo de Igreja”. É o que diz com acerto o vaticanista Marco Politi, em entrevista publicada no jornal O Globo (28/07/2013). Para ele, Francisco “abriu uma revolução” no âmbito da comunidade ecclesial. Como no Vaticano II, a primavera volta a mostrar seu rosto iluminado na Igreja, e a nova música que se apresenta tem os toques da acolhida, do serviço e da colegialidade.

Faustino Teixeira
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.