Ele chamou minha atenção pela primeira vez quando, bispo de São Bernardo, foi visto em companhia dos metalúrgicos em greve no ABC paulista, em 1975. O país em ditadura militar e o bispo ao lado dos grevistas, sentado à mesa com Lula e os sindicalistas para negociar com os empresários. Fez-me lembrar Jesus de Nazaré, de quem perguntaram: Quem é esse que come com publicanos e prostitutas?
Gaúcho de nascença e franciscano por vocação e consagração, Cláudio Hummes foi sagrado bispo em 1975 e assumiu a diocese de Santo André, na região metropolitana de São Paulo. Em 1979, durante a ditadura militar, ocorreu a greve geral dos metalúrgicos do ABC por melhores condições de trabalho. Lula era o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. O movimento durou 41 dias e mobilizou mais de 200 mil trabalhadores.
Os metalúrgicos do ABC paulista haviam começado a greve geral em 13 de março de 1979, às vésperas da posse do general João Figueiredo na Presidência da República. No dia seguinte, enquanto a Justiça do Trabalho declarava a paralisação ilegal, dando respaldo jurídico ao Estado para reprimir a mobilização, Dom Cláudio Hummes chegava na sede do Sindicato dos Metalúrgicos para dar apoio aos grevistas.
Sendo diretor da Pastoral Operária, o bispo explicava com clareza e simplicidade: “A Igreja está prestando solidariedade ao movimento, que deve ser igual ao do ano passado: uma vitória da classe operária”. Referia-se aos idos de 1978, quando milhares de metalúrgicos do ABC haviam feito ações pontuais contra o arrocho salarial e reivindicavam recuperação da autonomia sindical. O movimento ganhara força e a greve de 1979 mobilizara um número muito maior de trabalhadores.
O sindicato estava sob intervenção federal. Dom Cláudio se posicionou contra a demissão dos grevistas e ofereceu a igreja para abrigar as assembleias dos trabalhadores. Em reunião com outros irmãos seus no episcopado, ele explicou sua atitude: “Oferecia-se num primeiro momento as dependências das paróquias, exceto templos. Só quando essas dependências não serviam, como último recurso ofereciam-se também os templos. Esse último recurso foi usado sobretudo em São Bernardo do Campo, onde os trabalhadores respeitaram com muita dignidade o interior do templo, sem qualquer abuso. Quem não respeitou foi a repressão, que invadiu a nave da igreja e acabou prendendo um sindicalista dentro da sacristia…”
Assim deixava clara sua posição. A Igreja não incitava a greve nem promovia agitação. Sua presença nas assembleias, ao lado dos operários, era parte de sua obrigação religiosa. Estava ali como pastor, pois o pastor deve estar presente onde está seu povo, sobretudo nos momentos de conflitos e tensões. Representava ali a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Após uma assembleia decidir suspender a greve por 45 dias, diante de um acordo provisório com o patronato, Dom Cláudio declarou: “O fato de o governo ter aceitado a mediação de um bispo significa que ele empenha a sua palavra ante a própria CNBB e deverá cumprir suas promessas”.
Dom Cláudio não via sua atuação nos problemas sociais dissociada de sua ação pastoral e evangelizadora. A síntese fé e política configurava sua missão e atuação como pastor, primeiro no ABC e posteriormente à frente da arquidiocese de São Paulo. A preocupação com os mais pobres e excluídos, constitutiva do carisma de Francisco de Assis, o acompanhou ao longo de toda a sua vida.
Já sagrado cardeal pelo Papa João Paulo II e participando como eleitor do conclave que devia eleger o sucessor do Papa Bento XVI, acompanhou e apoiou o argentino Jorge Mario Bergoglio, que aparecia como favorito na eleição. Quando a votação se revelou clara abraçou e beijou o novo papa e sussurrou-lhe algo que marcaria todo o seu pontificado: “Não se esqueça dos pobres”. E esse sussurro profético veio acompanhado do nome que passaria a ser o do novo pontífice: Francisco, o pobrezinho de Deus, que brilhou como um sol sobre o mundo e a humanidade.
Francisco lhe pediu que cuidasse de sua querida Amazônia, o que fez com entusiasmo e entrega. Foi relator do Sínodo da Amazônia, realizado em 2019, e em meio às dificuldades e incompreensões que cercaram aquele momento, foi uma presença de luminosidade e discernimento que deixou claro que a Igreja estava com o papa apesar de todas as posições em contrário. Com a saúde debilitada já há um bom tempo, Dom Cláudio Hummes faleceu no último dia 4 de julho.
Testemunhou com sua vida e missão aquilo que Francisco afirma e solicita em sua última encíclica, “Fratelli Tutti”, de 2020: a política é a forma mais alta da caridade. A vida do cardeal foi uma síntese feliz desse binômio que o papa deseja que configure a vida de cada fiel cristão: fé e política. Descanse em paz, Dom Cláudio Hummes. A Igreja do Brasil procurará ser fiel a seu legado.
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.