No dia 15 de janeiro de 2014 Etty Hillesum estaria completando 100 anos. Embora pouco conhecida no Brasil, esta mística neerlandesa foi uma das personalidades mais luminosas do século XX, sobretudo em razão de seu exemplo de vida e esperança. Ela nasceu em na pequena cidade de Middelburg, no sudoeste dos Países Baixos, na província da Zelândia. Seu pai, Louis Hillesum, era professor e um erudito, com formação em línguas clássicas. Sua mãe, Riva Hillesum-Bernstein, era russa e dotada de um firme caráter. Além de Etty, os pais tiveram ainda dois filhos, Jaap Hillesum e Mischa Hillesum. O primeiro com formação em medicina e o segundo dotado de um grande talento musical, mas ambos frágeis em âmbito psicológico.
Depois de fazer o ginásio na cidade de Deventer, seguiu seus estudos superiores, em Jurisprudência, em Amsterdã, num ambiente estudantil pontuado por influências de esquerda e anti-fascista. Ali também estudou línguas eslavas, e em particular língua e literatura russa. Motivo importante de recordação foi sua presença na casa de Han Wegerif, em Amsterdã, a partir de 1937. Com ele chegou a ter uma relação de maior proximidade e uma experiência dolorosa de aborto, relatada num dos cadernos de seu diário, com data de 8 de dezembro de 1941. Na mesma casa conviveu com um estudante de química, Bernard Meylink, que acabou servindo de ponte para o seu contato com Julius Spier, um psicoquirólogo, especializado na leitura de mãos. Etty Hillesum, muito impressionada com a personalidade de Spier, decidiu fazer terapia com ele e logo a experiência desdobrou numa relação amorosa intensa.
O contato com Spier foi também importante para o processo de amadurecimento de Etty, como ela relatou em página de seu diário, em maio de 1941. Abriu também portas singulares para o seu crescimento interior, com o aconselhamento de leituras fundamentais que a acompanharão por toda a vida, como a Bíblia e Santo Agostinho. Também outros autores, como Rilke e Dostoievski, que já faziam parte de seu repertório de leitura, ganham agora um significado mais profundo. Possivelmente é sob o impulso de Spier, e como parte de sua terapia, que Etty inicia o seu diário em março de 1941, aos 27 anos. E o trabalho redacional vem animado por singular “fogo interior”, com páginas de impressionante vitalidade e copiosidade. Na recente edição integral italiana o trabalho soma 922 páginas (Adelphi, 2012). Ali busca organizar o seu mundo interior. Aos poucos vai encontrando um eixo norteador de sua busca pela verdade e pela fidelidade a si: “Encontrei o contato comigo mesma, com a parte melhor e mais profunda de meu ser, aquela que chamo Deus” (Diário, 10 de agosto de 1941). A soma dos cadernos veio entregue por Etty à sua amiga Maria Tuising, antes de sua partida para o campo de concentração. Além do diário, há a riqueza das cartas, cobrindo os anos de 1942 a 1943, cuja primeira edição parcial foi publicada na Holanda em 1982. Na Itália, esta obra ganhou sua nona edição, em fevereiro de 2012 (Adelphi).
O cerco nazista contra os judeus na Holanda ganhou novos contornos em 1942, quando foram obrigados a portar no peito a estrela amarela, e a Holanda foi declarada “Judenrein”, ou seja “limpa dos judeus”. Neste mesmo ano, Etty foi indicada para o Conselho Hebraico, um organismo ad hoc criado pelos alemães com o intuito de organizar a saída dos judeus. Os judeus considerados “idôneos” eram transferidos para “campos de trabalho”. Um desses campos foi Westerbork, instituído no final de 1939 pelos holandeses com a finalidade de abrigar os judeus fugitivos da Alemanha antes da guerra. Este campo ficava na província de Drenthe, nas proximidades de Assen (Holanda norte-oriental). No ano de 1942, o lugar transforma-se em campo de concentração, onde cerca de cem mil judeus holandeses encontraram sua última parada antes de serem exterminados na Polônia, em Auschwitz. O trabalho de Etty no mencionado Conselho a isentava de internamento em Westerbork, mas um pouco depois de conseguir esse cargo solicitou sua transferência para esta localidade, assumindo ali a tarefa de “assistente social”, justamente no momento em que começava o programa de deportação para Auschwitz. Entre julho de 1942 a setembro de 1944, a cada semana, foram cerca de noventa e três trens carregados de judeus com o sombrio destino da morte. Em carta de dezembro de 1942, que acabou sendo publicada pela resistência holandesa em 1943, Etty descreve para duas amigas as tristes condições desse “campo de trânsito”. Dentre as carências mais graves, a “falta de espaço”, bem como as terríveis condições de higiene, que incidiram nos inúmeros casos de doença entre os deportados. Ainda mais duro que o trabalho forçado era a tensão presente entre os judeus, a cada semana, com a leitura da lista dos indicados para tomar o trem e dar prosseguimento à sua “interminável via crucis”. Em correspondência de 10 de julho de 1943, Etty relata a Maria Tuinzing o clima de tensão num campo que viu partir dez mil pessoas, entre velhos e jovens, doentes e sãos. E assinalava ser mais fácil rezar para os que estavam distantes, mas muito difícil para aqueles que estavam ali bem próximos, com seu sofrimento exposto. E dentre eles, seus pais e irmãos, que também foram encaminhados para o mesmo campo.
Foi ali em Westerbork que Etty Hillesum pôde mostrar toda a força e o potencial de sua esperança. Suas vivas reservas interiores tinham sido reforçadas antes, num trabalho pessoal de harmonização. Foi familiarizando-se com essa escuta interior, esta atenção ao mundo da profundidade (Hineinhorchen). Dizia em página de seu diário, em 17 de setembro de 1942:
“No fundo, a minha vida é um ininterrupto escutar dentro de mim mesma, os outros, Deus. E quando digo que escuto dentro, é em realidade Deus que escuta dentro de mim. A parte mais essencial e profunda de mim que presta atenção à parte mais essencial do outro. Deus a Deus”.
A acolhida e escuta da voz interior (Sich versenken) foi marcando sua trajetória de vida. Dizia que a cada manhã todos deveriam abrir esse espaço interior, nessa “hora tranquila” (stille Stunde) de renovação do ser, de forma a poder escutar o mundo da profundidade e renovar o dia com essa iluminação (Diário, 8 e 10 de junho de 1941).
Com a experiência no campo de concentração, o seu “núcleo interior” tornou-se ainda mais sólido e forte. Suas reservas vitais mostram agora toda a sua densidade. Em linda página de carta escrita a amigos, em 3 de julho de 1943, sublinha:
“Queria dizer apenas o seguinte: a miséria aqui é verdadeiramente terrível e, ainda assim, à noite, quando o dia caiu num abismo atrás de nós, costumo caminhar a passos largos ao longo do arame farpado, e então, do coração alça sempre uma voz – não posso fazer nada, é assim, é de uma força elementar -, e esta voz diz: a vida é uma coisa esplêndida e grande, mais tarde deveremos construir um mundo completamente novo. A cada novo crime ou horror, devemos opor um novo segmento de amor e de bondade, conquistados em nós mesmos”.
Dentre os confinados no campo de Westerbork, Etty era reconhecida como o “coração pensante”, a “personalidade luminosa”. Foi um testemunho de fé, esperança e amor entre aqueles deserdados. O seu trabalho essencial foi o de erigir um “barreira interior” para evitar que a apatia ou o desânimo tomassem conta de seus companheiros. Estavam ali naquele “verdadeiro manicômio”, motivo de “vergonha para três séculos”. Sua voz erguia-se das sombras como brasa nas cinzas e reinventava a esperança: “Constato cada vez em mim mesma, quando se toca o limite do desespero e se acredita não poder mais avançar, eis que a balança pende para o outro lado, e se pode então rir e retomar a vida” (Carta de 5 de julho de 1953).
Com Rilke apreendeu a amar a vida nos seus mais rotineiros detalhes, a cantar com alegria, com o brilho nos olhos, o desafio do mundo em aberto, com as “veias cheias de existência”. Com ele soube reconhecer que o mundo não poderá se firmar a não ser no interior e que a vida aqui, sim, é o que há de grandioso. Essa esperança foi a força singela que tomou de assalto o coração dessa jovem neerlandesa.
Talvez o segredo maior dessa esperança tenha sido seu sentimento da Presença de Deus. Sua vida, como ela mesma relatou em carta de 18 de agosto de 1943, foi sempre um ininterrupto colóquio com Deus. Ainda mais: seu “único grande colóquio”. Deus, esse mistério maior que a ajudou perceber que por trás de todo esse campo de dor existe um “ritmo mais profundo” que deve animar a escuta e irrigar a esperança. Apesar de tudo, jamais entrou em combate com Deus, como ocorreu com Jó, mas junto a Ele encontrou a segurança que precisava. Foi nesse “colóquio interior” com Ele que reuniu as forças criativas para levar em frente o seu sonho de amor; foi com Ele que as ondas de seu coração ganharam maior amplidão, podendo hospedar de forma singular os outros.
O potencial de hospitalidade foi um dos grandes valores presentes na trajetória de Etty Hillesum: deixar-se hospedar pelo outro no espaço mais íntimo da vida, ali florescendo e irradiando. Em página de seu diário, no dia 13 de março de 1942, ela dizia: “Acolher o outro no próprio espaço interior e deixar que ali floresça, dar-lhe um lugar onde possa crescer e se desenvolver”. Esta sim é a grande responsabilidade que toca aos humanos.
Esse foi o caminho místico de Etty Hillesum, o caminho da doação, da irradiação da alegria e esperança, da hospitalidade. Há místicos, como Teresa de Ávila, que sinalizaram que o acesso ao Castelo Interior se dá através da oração. No caso da jovem mística neerlandesa, a porta de acesso a essa Morada foi sua própria vida. É o que indicou com acerto a pesquisadora e carmelita Cristina Dobner, em singular obra italiana sobre as páginas místicas de Etty Hillesum (Ancora, 2007).
Em sua última carta, datada de 7 de setembro de 1943, Etty Hillesum relata sua partida, junto com sua família, no trem que os levaria para a morte em Auschwitz. Viajaram em vagões diferentes, e é possível que seus pais tenham morrido ainda durante a viagem de três dias. Estavam todos “fortes e calmos”: ela, seus pais e seu irmão Mischa. Relata ainda que todos deixaram “o campo cantando”. Segundo a indicação da Cruz Vermelha, Etty morreu em Auschwitz em 30 de novembro de 1943, aos 29 anos de idade.
Para celebrar o acontecimento dos 100 anos de nascimento dessa mística contemporânea da alegria, a poeta brasileira, Mariana Ianelli, escreveu essas linhas em sua homenagem:
Trabalhava. Trabalhava numa primavera fria
esperando ser como a lua, ser como um pasto:
uma vasta paisagem tranquila –
e desenterrava Deus de sob pedras e cascalhos.
O caminho até o cais era feito entre soldados
(todos tão pequenos por trás de seus crimes).
E trabalhava mais: era uma estaca no mar,
era um pedaço de granito, era o próprio mundo
prestes a ser destruído. E trabalhava mais:
estava com os deportados, com os desaparecidos,
estava com uma flor num retângulo de jardim.
De minuto a minuto, forjando a calma em pessoa,
o sorriso de Buda, um terreno baldio.
E já havia partido, muito antes de partir, debaixo
de um céu sem palavras: era uma estrela nos campos,
era a mulher já sem nome do vagão número 12,
na direção do Leste, cantando de alegria.
Faustino Teixeira
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.