“Tá todo mundo louco, oba!” – cantava Silvio Brito nos anos 70. Talvez não seja possível comemorar tal fato, nem ironicamente como o faz o cantor, mas é preciso ratificar essa verdade nos nossos dias. Sim, “tá todo mundo louco” e isso não é bom sinal. Louco, mas não “maluco beleza”, como cantava Raul Seixas na mesma época.
Embora o termo “loucura” não figure mais na linguagem científica, comumente é associado à falta de razão. Essa, por sua vez, seria a instância capaz de captar os dados da realidade e ordená-los devidamente ao sujeito. Nesse sentido, se alguém vê algo além do que os olhos captam, estaria alucinando (excetuando as situações de diferenças biológicas). O louco, portanto, destoaria em sua percepção do real, conectando dados aleatoriamente ou confundindo memórias e sentidos atuais, por exemplo.
Acontece que, em grande parte, esse ordenamento é aprendido ou, ao menos, elaborado culturalmente, estruturado pela linguagem. Quando falta esse elemento, como acontece nos clássicos casos de crianças criadas por animais (como na lenda de Mogli), o mundo será percebido de modo totalmente diferente. Desse modo, quando uma percepção da realidade destoa demais do comum – alguma singularidade é sempre aceita já que cada um apreende o mundo de modo único –, quando o modo de se relacionar com as coisas foge em demasia do convencionado socialmente, atribui-se o adjetivo de louco.
Por não perceber da mesma forma, o louco também não sente da mesma forma. Consequentemente, suas reações serão muitas vezes taxadas de desproporcionais, porque não serão as esperadas pelos que abraçaram a coercitividade social, a norma do comum. O que leva, assim, a entender o louco como alguém que sente, percebe e se relaciona com o mundo de modo profundamente singular. Não se trata de alguém que rompeu com a realidade, mas com uma noção comum da realidade ou modo amplamente aceito de a ler. O louco não é irracional, mas desenvolve uma outra racionalidade que não se pauta pelas coerências funcionais da razão comum.
Por isso é muito difícil distinguir, em religião, o santo do louco. Ambos sentem, percebem e agem diferentemente dos demais. Ao santo se atribui uma iluminação desde o divino que lhe permite ver a realidade para além de suas aparências fenomênicas. Ao louco se atribui uma ilusão da própria mente. Algo parecido acontece ao gênio, alguém que conseguiria ler outros aspectos da realidade que a maioria não é capaz, embora muitas vezes sejam tidos como “meio loucos”. De qualquer forma, loucura é o nome pejorativo que o comum deu ao diferente.
Com efeito, sem o compartilhamento de uma cultura comum o tecido social se esgarça e nenhuma convivência é possível. Por isso a sociedade busca enquadrar os dissidentes, censurar o diferente, curar os não-iguais e disciplinar a todos a fim de proporcionar uma coerência entre os indivíduos que possibilite a vida em sociedade. Se, de uma parte, a vida em sociedade visa a salvaguarda da individual – haja vista humano nenhum ser uma ilha –, de outra, o grupo pode ser opressivo e controlador ao ponto de excluir a individualidade.
É por isso que a homossexualidade fora tratada como doença, porque consistia em um desejar não aceito socialmente. Hoje, outras singularidades são patologizadas, como crianças que não se adequam à estrutura social e são tidas como “hiperativas”. Como sentem, concentram-se e aprendem em tempos diferentes, são vistas como problema. Não se problematiza a escola e a necessidade de ficar um volume grande de tempo sentado, mas a criança que se levanta o tempo todo. Nem sempre o problema seria algum excesso na produção hormonal, causando algum desconforto ao sujeito, mas o transtorno social que isso causa ao indivíduo e sua adequação ao grupo.
Buscamos, dessa maneira, um meio termo, que nos permita viver, crescer, aprender e nos relacionarmos com os outros, respeitando seus limites e possibilidades, ao passo que tentamos resguardar nossa singularidade, liberdade e criatividade. O maluco beleza é aquele que consegue ser si mesmo sem dolo dos demais. Isso é diferente da loucura que estamos assistindo, como numa espécie de surto coletivo.
Contra qualquer diálogo possível, as pessoas se armam nas redes sociais para atacarem umas às outras ou defender ferrenhamente seus pontos de vista. Podem até ver que estão erradas, mas não cederão. Às vezes alguém tenta dialogar, dizendo a mesma coisa com outras palavras, e é recebido como se estivesse depredando a opinião com a qual estava concordando (porque problemas de interpretação são características destes tempos). Muitos se entendem como celebridades, mas sem audiência. O individualismo chegou aos píncaros, num tipo de rompimento com a alteridade que lhe nega qualquer humanidade.
Esse fechamento em si, no próprio mundo, que não encontra partilha com os demais, consiste na loucura que não se pode celebrar. São esses encerrados no próprio eu os que querem violentar quem não pensa igual ou que são capazes de agredir quem lhes perturba. O mundo anda tão perturbado que aqueles que não sucumbem ao fechamento estão implodindo, adoecendo para manter um mínimo de coerência. A pandemia talvez não seja a causa, mas tenha evidenciado e acelerado o cenário desse enlouquecimento, de modo que quem não adoece, surta.
Gilmar Pereira – Dom Total