“Limitemos o tempo que as crianças passam na frente das telas”, propôs o psiquiatra e doutor em psicologia Serge Tisseron, há duas décadas. Seus estudos de campo foram a base sobre a qual foram fundadas as restrições às transmissões dirigidas a bebês e crianças pequenas na televisão francesa, como a decisão do Ministério da Saúde de ordenar, em 2008, que todos esses programas apresentassem uma advertência.
Mas então, veio a Covid-19 e as escolas do mundo ficaram presas a esses mesmos tablets, computadores e celulares. Poucos dias antes de participar da Noite das Ideias, o intelectual, que é pesquisador principal da Universidade Paris VII – Denis Diderot, refletiu em uma conversa virtual sobre o vínculo entre tecnologia e dispositivos: “Só pode haver educação sobre a tela, caso haja partilha”, adverte.
A entrevista é de Débora Campos, publicada por Clarín-Revista Ñ, 22-01-2021. A tradução é do Cepat.
Eis entrevista.
Há pelo menos 20 anos você reflete sobre a influência das telas nas pessoas (especialmente crianças). Seu livro “Enfants sous influencia: les écrans rendent-ils les jeunes violents?” foi publicado no ano de 2000. Por que não queremos ouvir?
Em primeiro lugar, porque as telas oferecem um grande serviço aos pais. Em muitas famílias, os avós não estão mais presentes para cuidar quando o pai ou a mãe não estão disponíveis para o filho, seja por motivos de trabalho, lazer ou manutenção da vida social dos filhos. A tela se torna, assim, uma nova babá.
E a segunda razão é que todos nós somos absorvidos por essas telas. E só pode haver educação sobre a tela, caso haja partilha. Começando pela participação nas refeições em família sem televisão, tablet ou smartphone para transformá-las em momentos de troca na convivência, e nunca levando o celular para o quarto à noite, pois a tentação de usá-lo, para um adolescente, é obviamente grande demais! Em resumo, muitas vezes é o bom exemplo que nossos filhos sentem falta e é o mais difícil de dar.
Você explica que, diante de um filme, os adultos distinguem entre ficção e realidade, mas que as crianças não interpretam as imagens que recebem da mesma forma. O que se passa na cabeça das crianças?
Nas crianças, as emoções são o principal problema. Para controlá-las são usadas as regiões do cérebro que ainda não estão maduras nessas idades iniciais. Por isso, experimentam as imagens com maior intensidade, não conseguem controlar suas emoções e são esmagadas por elas. É isso que as deixa ansiosas. Mas não há mais confusão entre fato e ficção nelas do que nos adultos.
Os consoles de jogos funcionam hoje como um ponto de encontro entre as crianças, um espaço de socialização e troca, como antes podiam ser as praças. O que essa mudança significa para a psique e as emoções de uma criança?
Como no passado, as crianças que usam ferramentas digitais podem brincar sozinhas ou juntas e se envolver em jogos repetitivos ou criativos. Existem algumas atividades na tela que são apaixonantes e criativas e outras que não são nem socializantes, nem criativas. Tudo depende dos jogos e das formas de jogar. Um jogador sempre usa duas formas de interação em proporções variadas. Com interações sensoriais e motoras, monitora o aparecimento de certos objetos na tela para fazê-los desaparecer, apreendê-los ou classificá-los. Essas interações hiperativas cansam a atenção e afastam a atividade mental de prever e planejar um “programa” ou “mapa de rota”.
Nas interações narrativas, por outro lado, a preocupação narrativa é central: o jogador pensa antes de agir. O modelo para tais jogos seria El libro del que eres el héroe (NDR: uma coleção criada em 1984 pela editora Gallimard comparável à coleção Elige tu propia aventura). Essa forma de jogar pode ajudar os jogadores a aprender a controlar certas formas de ansiedade, dar forma simbólica à sua agressividade, explorar vários registros de identidade e aprender a trabalhar em equipe. Incentiva o jogador que é convidado a falar de seu jogo.
Você é o impulsionador da campanha 3-6-9-12 para vincular as telas às crianças. Como isso se aplica na França?
A campanha foi elaborada tanto para ensinar nossas crianças a usar telas como para ensiná-las a abrir mão delas. Para isso, propomos três princípios pedagógicos: alternância (para favorecer atividades com e sem telas), acompanhamento (conversar com a criança sobre o que ela faz e sobre o que vê nelas) e autonomia de aprendizagem (favorecer a autorregulação, fomentando a espera).
O resultado são quatro dicas para todas as idades: escolher juntos programas de qualidade, limitar o tempo de tela, conversar com a criança sobre o que ela faz e vê nas telas e fomentar as práticas criativas. Os conselhos adaptados para cada idade, centrados em crianças de 3, 6, 9 e 12 anos, completam essas dicas gerais. Trabalhamos com pais, filhos e profissionais. Temos um site (www.3-6-9-12.org) e nossos pôsteres estão traduzidos para 13 idiomas.
A pandemia de Covid fez com que, ao menos na Argentina, as aulas passassem para a modalidade virtual, ao longo do ano letivo de 2020. Como é possível dosar a chegada das telas na vida das crianças, se a própria escola, agora, só tem espaço em uma tela?
O problema é que, ao menos na França, durante o confinamento, não houve um ensino realmente pensado para o remoto. Houve apenas um distanciamento do ensino tradicional. Mas o ensino tradicional não somente é inadequado para a educação a distância, como também para o desenvolvimento das crianças. O ensino deve priorizar o trabalho colaborativo, cada vez mais esperado pelos empregadores, a tutoria entre os alunos, o corpo, os sentidos e as oito formas complementares de inteligência disponíveis para todo ser humano.
Para isso, os professores devem desenvolver a pedagogia de aula invertida e de projeto. A autonomia, a curiosidade e a adaptabilidade da criança devem nortear todos os projetos. Somente se essa revolução pedagógica ocorrer, a tecnologia digital poderá crescer na escola. Caso contrário, corre-se o risco de esconder outros imperativos, mesmo que tenha um lugar essencial para ocupar.
Disse em uma entrevista, em 2002: “Na minha opinião, a nossa relação com as imagens é o grande desafio do início do terceiro milênio, porque a natureza das imagens mudou completamente com o nascimento do virtual e somos obrigados a mudar de paradigma”. Quase duas décadas depois, é claro que o paradigma é outro. O que imaginou há 20 anos e quais fatores dessa transformação surpreenderam você?
Pude ver a crescente importância das imagens em nossas vidas, mas não havia previsto as mídias sociais e o desenvolvimento de algoritmos que eram cada vez mais capazes de nos seguir em todos os lugares e guiar nossas escolhas. As empresas digitais estão construindo um modelo de governança que tornam as relações de poder invisíveis. Pegam nossas informações mais insignificantes, agrupam, cruzam e analisam para nos persuadir a ficar mais tempo em um jogo ou plataforma, para comprar ou acreditar em coisas novas.
Para que os usuários possam gerir melhor os efeitos positivos das telas e reduzir os seus efeitos negativos, os programadores dos algoritmos de apoio à decisão precisam ser obrigados a produzir, além dos resultados esperados, elementos de explicação. Somente consumidores informados podem controlar suas escolhas. Educar os consumidores, desde a infância, sobre tecnologia digital e as estratégias de algoritmos é a única forma de preservar sua liberdade e democracia.
Débora Campos – Clarín-Revista – IHU