Desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), onde se firmou o Pacto das Catacumbas, e da Conferência Episcopal de Medellín (1968), expressiva parcela da Igreja Católica latino-americana passou a fazer e a falar de “opção pelos pobres”. Na segunda metade da década de 1970, contei 14 barracos de agentes pastorais inseridos em favelas de Vitória (ES).

No entanto, todo o movimento das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e das pastorais populares foi atropelado por 34 anos de pontificados conservadores de João Paulo II (26 anos) e Bento XVI (8 anos). A “volta à grande tradição” (J.B. Libanio), incentivada por aqueles pontífices, penetrou seminários e trouxe de fora para dentro do Brasil diversos movimentos marcados por uma espiritualidade intimista, carismática, clericalista, desprovida de caráter social e de compromisso com a opção pelos pobres.

Desmobilizados cardeais, arcebispos, bispos e sacerdotes comprometidos com a opção pelos pobres (seja por morte, idade avançada, falta de apoio etc.) as pastorais populares refluíram e a literatura produzida pela Teologia da Libertação deixou de ter o impacto conhecido entre as décadas de 1970-1990, quando circulava como pão quente saído do forno. Então se confirmou o bordão de que “os católicos optaram pelos pobres, mas os pobres optaram pelas Igrejas evangélicas”.

Muitos fatores explicam certo esvaziamento das comunidades católicas de base popular. Atenho-me aqui a uns poucos. Ao reler a literatura bíblico-teológica daquelas décadas de “ouro”, constato que a maioria dos autores, entre os quais me incluo, repetiam a cada parágrafo a palavra “pobre”. Hoje me pergunto se o pessoal das comunidades se reconhecia nesse espelho. Acredito que não. Todo pobre considera pobre quem se encontra em situação pior que a dele. E os participantes das CEBs não eram, em sua maioria, propriamente pessoas obrigadas a viver na rua, mendigos ou condenados à fome.

Hoje me pergunto se aquela exaltação do pobre, quase como se tal condição fosse uma virtude, não teria sido antipedagógica. Porque não há, em toda a Bíblia, um único versículo que afirme ser a pobreza “agradável aos olhos de Deus”. A pobreza é um mal, amargo fruto da injustiça. E se Deus faz opção pelo pobre, como reza a bem-aventurança e o comprova o testemunho de Jesus, é por se colocar ao lado dos pobres, os únicos potencialmente interessados em se libertar da pobreza.

Todo pobre deseja sair, o quanto antes, da pobreza, seja pelo trabalho árduo (e mal remunerado), a sorte na loteria ou mesmo a criminalidade. E vale lembrar que nenhum de nós, agentes pastorais e teólogos, que tanto enfatizávamos a “opção pelos pobres”, fez opção pela pobreza, mesmo quando inserido no meio dos pobres, como foi o meu caso ao longo de cinco anos nas favelas da Grande Vitória, primeiro em Cariacica e, em seguida, no morro de Santa Maria, na capital capixaba.

Todos nós tínhamos (e temos) forte anteparo contra a pobreza (relações familiares, congregação ou ordem religiosa, remuneração de trabalhos, projetos de apoio à pastoral etc.), o que certamente não passava despercebido pelas comunidades. Assim, me pergunto se não deveríamos ter enfatizado mais a categoria de classes sociais, desvendando as entranhas da luta de classes, da desigualdade social, e os mecanismos de alienação e mais-valia. Quase beiramos a canonização da pobreza…

Hoje, a Teologia da Prosperidade apregoa exatamente o contrário de nosso discurso e, portanto, mobiliza os pobres na esperança imediata de se livrarem da penúria. De certa forma, demonizamos aqueles que, aos olhos de muitos pobres, são modelos a ser alcançados – os ricos. Quem não quer uma vida confortável, boa moradia, segurança na preservação da saúde e qualidade na educação dos filhos? Quiçá deveríamos ter trabalhado mais as contradições sociais que dividem a população em classes antagônicas e enfatizar as causas desse antagonismo, e de como ele é condenado pela Palavra de Deus.

Até porque, a rigor, não há pobres, há empobrecidos, pessoas que, involuntariamente, foram induzidas à situação de carência de bens essenciais à vida digna.

 

Frei Betto
Frade dominicano, jornalista graduado e escritor brasileiro. É adepto da Teologia da Libertação, militante de movimentos pastorais e sociais. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.