Os sistemas democráticos pelo mundo ocidental vivem momentos de intensas redefinições – pressionados pela imigração clandestina, pelo terrorismo e pela ascensão de governos de direita -, que implicam evolução dos paradigmas que sustentam a universalização e equidade de direitos da pessoa humana, e suas liberdades dentro do Estado Constitucional de Direito. No Brasil, cujos paradigmas do Estado Constitucional parecem evoluir sob uma crônica distonia, onde as práticas políticas dos governos e das instituições não correspondem à liberdade do voto. Isto faz com que o trabalho histórico se torne mais árduo exigindo mais acuidade nas análises, e menos paixão nas conclusões, uma vez que todo o processo histórico há muito está sob rígido domínio da epistemologia da branquitude. E algumas das inerências da branquitude são, além do nepotismo e compadrio, por exemplo, a discriminação, o preconceito e o racismo.
A presença das contribuições da comunidade negra para a evolução do Estado de Direito se dá, paradoxalmente no Brasil, nas muitas bulas, normas e leis que regulamentaram a escravização de africanos e seus descendentes, aos marcos jurídicos e políticos que se consolidaram com a Constituição Federal de 1988, ou com a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância promovida pela ONU, em Durban no ano de 2001, quando deixou-se de tecer loas à democracia racial e o combate ao racismo passou a constar das pautas de Estado e do governo brasileiros.
Nesse contexto a ação política do movimento negro nos últimos 40 anos, possibilitou a produção de direitos para a população negra jamais alcançada ao longo de toda a história do país. São conquistas obtidas exclusivamente no campo democrático – sem nenhum recurso bélico -, determinantes nas áreas de saúde, trabalho, território, cultura, além de cotas na educação universitária e no serviço público. E ainda a criminalização do racismo mas, sobretudo, a Lei 10638/2003 que determina o ensino da História e da Cultura africana e afro-brasileira em toda a rede de ensino nacional.
Com tantos direitos conquistados em tão pouco tempo a democracia brasileira, à maneira de um camaleão acuado, manifestou-se em dois tons aberrantes, entre as muitas cores que a ignorância e o obscurantismo possibilitam na paleta social que vai do ódio ao medo da quebra do status quo garantido pela branquitude.
De um lado o operador de direito instalado no Estado assume o seu papel como agente do racismo estrutural, seja na rede de ensino pela recusa, ou incompetência, para implementar um currículo que contemple a Lei 10.639/03, seja no Legislativo e no Executivo para consolidar programas de ações que atendam a legislação positiva vigente. E na sociedade civil, além da reatividade popular com um surto de bestiais manifestações racistas no comércio, nas escolas, hospitais, setores de segurança. Mas, o negacionismo mais surpreendente foi produzido por cerca de 200 intelectuais, cientistas, pesquisadores, músicos, acadêmicos, escritores, todos brancos brasileiros – ‘abodarrados’, à guisa de Luiz Gama -, e um negro, que tiveram a competência de se manifestarem junto ao Superior Tribunal Federal requerendo daquela instância que declarasse a inconstitucionalidade do sistema de cotas para negros, mas não para portadores de necessidades especiais, mulheres e povos indígenas.
Os paradigmas da democracia não conseguem involuir e quando muito, ficam estagnados. É o caso das pautas políticas da comunidade negra na atual conjuntura democrática vivida pelos brasileiros. Isso exige do movimento negro uma apurada releitura de suas conquistas e o estabelecimento de novas estratégias que contribuam para a retomada da evolução e consolidação daquelas conquistas e do processo democrático.
É certo que essas estratégias implicam avaliação contínua das parcerias estabelecidas no processo de lutas. O atual desarranjo democrático favoreceu o recrudescimento do extermínio de jovens negros, forçando o movimento a empreender maior esforço para conter essa tragédia. A pauta política negra vive período de descontrolada difusão, uma vez que o racismo se manifesta simultaneamente em diversos setores, dificultando o esforço na direção de apropriação dos direitos à cidadania postos na Constituição de 1988. Caso emblemático, como já constatado em outros setores que operam o sistema de cotas raciais, ocorreu recentemente com indivíduos não-negros se apropriando dos recursos destinados aos negros pelo Fundo Eleitoral; ou mesmo a intensificação da criminalização da cor por parte do judiciário, expressa não só pelo aumento da pena em relação ao cidadão negro, quanto pela expressão literal dessa criminalização quando uma juíza do Paraná, condenou um homem, réu primário, por associação criminosa (3 a 8 anos de reclusão) e roubo (4 a 10 anos de reclusão) a 14 anos de prisão afirmando que tal pena decorria “em razão de sua raça”.
Mas um outro tom da democracia começa a se firmar como cor forte. Depois de décadas de esforços, o voto racial negro, e o voto de segmentos considerados minoritários, apareceram nas estatísticas das últimas eleições municipais (2020), não como uma ocorrência aleatória mas, sobretudo, como uma tomada de consciência racial e política.
O número de candidatos pretos e pardos (278.946) foi superior ao de brancos (267.920) e nas 25 capitais do país o percentual de pessoas negras (pretos e pardos) ocupando a vereança é de aproximadamente 44%, uma marca histórica, embora tímida ainda. Entretanto, é importante considerar que o atrativo financeiro do Fundo Eleitoral, fez com que muitos candidatos se declarassem pretos ou pardos, como se pode constatar pelos vereadores eleitos na cidade de Palmas, Tocantins, cuja maioria é explicitamente do que se pode chamar de brancos brasileiros.
Um dos recursos recentes utilizados pelas instituições de ensino e na realização de concursos públicos, para combater as fraudes sobre pertencimento racial negro, é o critério da heteroidentificação, que consiste na avaliação do candidato por terceiros – geralmente uma banca -, de elementos tais como fenótipo, cor da pele, ancestralidade, dentre outros.
A democracia, o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral certamente estarão presentes no processo eleitoral e nas eleições de 2022, que terão algo entre 30 mil e 35 mil candidatos aos cargos de presidente, senador, deputado federal e deputado estadual. Os percentuais dos recursos financeiros devem ser calculados em função do número de candidatas mulheres e de candidatos negros de cada partido. Então, para garantir bons tons da democracia brasileira, o movimento negro deve investir em candidaturas negras comprometidas com a pauta da comunidade afro-brasileira e o Tribunal Superior Eleitoral, à revelia dos partidos políticos, deve investir na instalação das comissões de heteroidentificação, para que sejam evitadas as perniciosas elisões, não as fonéticas, refiro às que se assemelham as elisões fiscais.
Éle Semog