A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão tem seus contornos herdados do “nascimento do homem”, no moldes cartesianos, passando pelo homem europeu do século XIX, dotado de toda razão e civilidade. Quando pensamos em direitos humanos, imediatamente nos remete a idéia de justiça e de racionalidade. Observamos, contudo, que, apesar do fato de que todos os homens deveriam ser minimamente contemplados por tais direitos, em nenhum momento a humanidade pensou no homem e nem o homem pensou na humanidade, restando uma minoria com direitos efetivos. O homem não pensa em si nem na coletividade. Aqueles que são contemplados pela Declaração dos Direitos Humanos não pensam naqueles que estão fora dela e estes, por sua vez, nunca dimensionaram o quanto são privados de seus direitos. Há um abismo entre o homem descrito, cheio de direitos e garantias pela declaração de 1789, e as mil e uma subjetividades no mundo. Possuímos, na verdade, um documento apaziguador de consciências.
A partir do século XIX, a vida humana passa a ser uma vida melhor administrada na medida em que é mais útil e produtiva, aumentando, assim, a potência do Estado. Percebemos que a nova lógica que rege a relação entre poder e a vida humana é a lógica da biopolítica e do biopoder, isto é, da política e do poder de um ou poucos para a coletividade; é o governo da vida, do homem-espécie e do corpo, respectivamente. Percebemos, deste modo, a preocupação do Estado com o governo da população. No sentido de buscar soluções para esta preocupação, surgem as políticas públicas para controle de natalidade, mortalidade e epidemias. O estabelecimento de políticas públicas para o controle (diminuição ou aumento) da natalidade, o controle da mortalidade (na prevenção de epidemias) e o prolongamento da vida, deve-se à percepção, por parte dos políticos e teóricos, de que a vida passava a ser o recurso de maior potencialidade para a manutenção e para o aumento do poder do Estado e do suprimento das necessidades de mercado.
Desde então, encara-se a vida humana como um recurso; um recurso que, à diferença dos outros recursos naturais, que são mais limitados e com um menor leque de uso, é altamente diversificado. O ser humano é aquele recurso que pode multiplicar todos os outros recursos, aumentando, assim, a potência do Estado e da sociedade de consumo, utilitarista e imediatista. É um recurso que qualifica qualquer outro, que vai multiplicar as possibilidades dos demais recursos. A vida humana passa, assim, a ser uma categoria política. O que antes era feito em nome da justiça, da liberdade, da moral, ou outro valor que possamos agregar, passou a ser operado com vistas à manutenção da vida humana e da potência do Estado. A vida passa a ser o objeto principal da disputa política a partir do século XIX.
“Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direito”
(Foucault, História da Sexualidade I, 1976, p. 191)
A manutenção e conservação da vida são, portanto, neste contexto, fundamentais para a sustentação do poder soberano, exercido por governos e pelo mercado. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é muito clara nesta proposta. No artigo 12o. lemos o seguinte: “A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública” (“Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, 1789).
Os direitos adquiridos, sob este ponto de vista, podem ser vistos como mais uma estratégia de controle político para a legitimação do poder, sendo que o cuidado da vida passaria a ser mais uma forma de domínio. Pode-se, sob esta óptica, considerar o papel do discurso humanitário, em uma abordagem sobre a subjetivação política, como uma forma de controle das condutas. Em alguns casos, esse discurso pode figurar como uma estratégia usada pelos Estados e instituições de mercado voltadas para a produção de recursos, após o séc XVIII, para manterem o domínio sobre a conduta de suas populações, aumentando, assim, suas potências. O Estado e o mercado captalista usam o discurso humanista para aumentar sua potência sobre a vida da população, como forma de tomar sob sua responsabilidade “a vida em geral”, a qual estamos considerando tanto o aspecto biológico como o subjetivo.
Assim, ao determinarmos quais são os direitos de todos os homens, fornecemos mais ferramentas para controle individual, pelo o Estado e instituições de controle capitalistas (tais como indústrias, empresas dos mais diversos ramos de atividades, grandes produtores do agronegócio, entidades de comércio e demais tipos de instituições envolvidas nos meios de produção e aglutinadoras de mão de obra). O sistema político e econômico que se configurou a partir do século XIX necessita de “corpos dóceis” que movimentem um sistema de produção, isto é, corpos moldáveis, corpos que sintam-se amparados e com muitos direitos, trabalhando de forma incessante e pacífica. A grande massa de “corpos dóceis”, da força de trabalho humana do mundo, não pode ser qualificada como “humana” pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão mas sente-se “protegida”, “representada” e “cuidada” pelo discurso humanitário que paira nas relações trabalhistas e políticas mundiais atualmente.
Vivemos um tempo em que a vida do indivíduo só tem relevância biológica na medida em que for produtiva. A luta pela vida biológica e natural é feita, desde então, com o uso de um discurso pelos direitos humanos. Deste modo, a luta pelos direitos humanos seria uma luta pela própria vida biológica.
A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos.
(Hannah Arendt)
Observamos estratégias de diferentes Estados no controle da pandemia e da mortalidade pelo novo coronavirus em suas nações. A morte de cada ser humano, globalmente, passou por políticas governamentais e a dor individual é diluída em muitos noticiários. O discurso humanitário prevalece, tentando controlar condutas e aumentar a tolerância de uma população enlutada, sem recursos e empobrecida por uma grave crise econômica. Diariamente ouvimos o número de óbitos pela infecção pelo COVID-19 nas últimas 24 horas. Escutamos um número a cada dia, que não é mais notícia no dia seguinte e a história de dor de cada família cai no anonimato dos milhares que morrem em silêncio, muitos sem condições mínimas de subsistência. Esta massa, silenciosa, são os corpos dóceis moldáveis e não humanos. Estes corpos, cheios de diretos garantidos, mas sem sua subjetividade contemplada por nenhum deles, são rigorosamente contemplados nas estatísticas que interessam e moldam-se a todo instante para servir e sobreviver, com uma falsa crença de liberdade e autonomia.
“Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança”
(Hannah Arendt)
Marina Baitello, Obvious