A Declaração Dignitas Infinita (DI), do Dicastério para a Doutrina da Fé (aqui), trata da dignidade e dos direitos humanos, incluindo as suas graves violações. Os temas são amplos, envolvendo pobreza, guerra, migrantes, tráfico humano, abuso sexual, violência contra as mulheres, aborto, pena de morte, eutanásia, pessoas com deficiência e violência digital. O que mais se comentou foram as críticas à teoria de gênero, à chamada mudança de sexo e à maternidade sub-rogada, também conhecida como barriga solidária.

O documento reconhece que a lista de temas escolhidos não é exaustiva, mas deseja expressar o pensamento sobre a dignidade humana que brota do Evangelho, sem esgotar algo tão rico e decisivo. A Igreja tem uma profunda convicção de que não se pode separar a evangelização da promoção de uma vida digna, pois o ser humano, criado por Deus e redimido por Jesus Cristo, deve ser tratado com amor e respeito em razão da sua inalienável dignidade. 

O pensamento dos papas sobre estes temas é apresentado de forma sintética. Uma importante novidade é o apelo à descriminalização da homessexualidade, pois prender, torturar e matar pessoas em razão de sua orientação sexual é contrário à dignidade humana.

Sobre a teoria de gênero, mostram-se fortes discordâncias por sua suposta pretensão de cancelar as diferenças humanas a fim de tornar todos iguais, negando inclusive a diferença sexual. Com respeito a esta teoria, cuja consistência científica muito se discute na comunidade dos especialistas, a Igreja afirma que a vida humana é um dom de Deus, em todos os seus componentes físicos e espirituais, que deve ser acolhido com gratidão e colocado a serviço do bem. Querer dispor de si, como supostamente prescreve a teoria de gênero, sem considerar a vida humana como dom, é ceder à velha tentação do ser humano de se converter em Deus, concorrendo com o verdadeiro Deus do amor revelado no Evangelho.

O corpo do ser humano participa da dignidade da imagem de Deus. Isto deve ser recordado especialmente quando se trata de mudança de sexo. Somos chamados a cuidar da nossa humanidade, aceitando-a e respeitando-a como foi criada. Daí decorre, segundo a Declaração, que “qualquer intervenção de mudança de sexo normalmente se arrisca a ameaçar a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da concepção”. Isto não se aplica a pessoas com anomalia dos genitais desde o nascimento ou a infância (intersexuais), em que a intervenção para resolver tal anomalia não configura mudança de sexo (DI, n. 60). 

A teoria de gênero de fato é muito discutida entre especialistas. A bem da verdade, não há uma explicação unificadora e abrangente, como é o caso de uma teoria. Há estudos que relacionam o sexo anatômico, o reconhecimento de si como homem ou mulher, o papel de gênero e a orientação sexual. O denominador comum destes estudos é que nem sempre há uma coerência necessária entre o sexo atribuído ao nascer, o reconhecimento e a vivência da própria identidade como homem ou mulher, o desejo e a prática sexuais. Não se deve supor que todos os homens e mulheres sejam cisgênero (identificados com o sexo atribuído ao nascer) e heterossexuais, conforme um binarismo simplista. Há pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgênero (ou simplesmente trans), e outras como os intersexuais, representadas na sigla LGBT+ que manifesta a complexa diversidade humana relacionada a orientação sexual e identidade de gênero. Não se deve tampouco ignorar as várias formas de discriminação e violência que não raramente oprimem e devastam estas pessoas.

Há pesquisas de neurociência indicando que a biologia da sexualidade não se reduz aos genitais e à anatomia. Sem desconsiderar a interação de fatores psicossociais, o cérebro tem um papel importante na identidade de gênero e na orientação sexual. No caso da pessoa transgênero, o cérebro e a percepção de si não correspondem aos genitais e ao restante do corpo. A pessoa pode se sentir homem em um corpo de mulher, ou se sentir mulher em um corpo de homem. Esta incongruência é chamada disforia de gênero, que causa tormento e não raramente leva à angústia e à depressão. Neste caso e em tantos outros, deve-se reconhecer que ser LGBT+ não é uma escolha pessoal e nem uma opção individualista. 

Uma renomada pesquisadora dos estudos de gênero, Judith Butler, afirmou que não é tão importante produzir novas formulações de gênero, mas sim construir um mundo em que as pessoas possam viver e respirar dentro de sua própria sexualidade e de seu próprio gênero. Para ela, é preciso que a complexidade existente possa ser reconhecida, e que o medo da marginalização, da patologização e da violência seja radicalmente eliminado (aqui). 

Nesta perspectiva, portanto, não se trata de cancelar as diferenças humanas e sexuais, e nem de dispor de si sem considerar a vida humana como dom divino. Ao contrário, trata-se de reconhecer devidamente estas diferenças que são constitutivas de cada humano. Aos que creem em Deus, isto faz parte da sua criação. A intervenção de mudança de sexo ameaça a dignidade humana, sim. Porém, o procedimento de transexualização em pessoa transgênero, visando a redesignação sexual para corrigir uma disforia de gênero já existente, é algo diferente. Pode ser tão necessário quanto a intervenção em intersexuais.

O papa Francisco teve vários encontros com pessoas LGBT+. Em um deles, Alessia Nobile, mulher trans com transição concluída, presenteou-o com um livro em que relata sua própria história de vida. O título é A Menina Invisível (La bambina invisibile), bem representativo do drama de tantas pessoas trans antes de sua transição. O papa pegou o livro e lhe disse: “ótimo. Você fez muito bem em escrever sua história”. Depois recomendou a Alessia ser sempre ela mesma, mas não se deixar envolver pelo preconceito contra a Igreja (aqui).

Para se evitar o preconceito contra a Igreja e mesmo dentro dela, deve-se lembrar que pessoas trans com transição concluída podem ser batizadas, tornando-se sacramentalmente filhas de Deus e membros da Igreja. Podem também ser padrinhos de casamento e de batismo. Na doutrina da Igreja Católica, expressa no Concílio Vaticano II, há uma ordem de importância entre seus ensinamentos chamada hierarquia de verdades. Conforme o nexo de cada ensinamento com o fundamento da fé cristã, alguns são mais importantes do que outros porque estão estreitamente ligados a este fundamento. O próprio Jesus, ao tratar de moral, indicou qual é o maior dos mandamentos e como os seus discípulos devem ser reconhecidos entre os homens. 

É preciso considerar a hierarquia de verdades também em relação aos LGBT+. Perguntaram ao papa Francisco qual é a coisa mais importante que estas pessoas precisam saber sobre Deus. A resposta dele é: “Deus é Pai e não renega nenhum de seus filhos. E o ‘estilo’ de Deus é ‘proximidade, misericórdia e ternura’. Ao longo deste caminho vocês encontrarão Deus” (aqui). É preciso ter este senso de prioridade, sem o qual há risco de se aprisionar as pessoas em questões secundárias e de se extinguir o Espírito.

Dignitas Infinitas com razão se propõe a expressar, sem esgotar, o pensamento sobre a dignidade humana que brota do Evangelho. Reafirma o direito fundamental à liberdade religiosa. Saúda a Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu 75º aniversário. Recorda a posição de João Paulo II em favor da igualdade entre cônjuges no direito de família. Em tudo isto, há uma importante história de mudanças e de evolução da doutrina na Igreja. 

No passado, a liberdade religiosa dos não católicos era inadmissível e por isso foi duramente reprimida. No início do século XX, o papa Pio X afirmou que os seres humanos não nascem totalmente livres e iguais em dignidade e direitos, mas se dividem em príncipes e vassalos, nobres e plebeus, sábios e ignorantes. Décadas depois, Pio XI ensinava que a sujeição da mulher ao marido é uma lei firmemente estabelecida por Deus, essencial à família, e por isso em nenhum tempo e lugar é lícito subvertê-la ou prejudicá-la.

É muito bom que tudo isto tenha mudado e que este processo possa continuar. Um pensamento que brota do Evangelho não deve ser imutável como um fóssil, mas reler o próprio Evangelho à luz da cultura e do mundo contemporâneos, atento às suas oportunidades e limitações. Gênero e dignidade humana precisam ser relacionados de modo a resplandecer o rosto de Deus, que é Pai e não renega nenhum de seus filhos LGBT+.

Luís Corrêa Lima é padre jesuíta, professor da PUC-Rio e autor do livro “Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos”.