Um dos mais fascinantes temas presentes no livro de Guimarães Rosa, “Grande Sertão:Veredas” refere-se à tensão entre o bem e o mal. Em todo o precioso relato de Riobaldo a grande dúvida que o acompanha, da primeira à última página é: “o diabo existe e não existe”. Em precioso trabalho sobre o livro, a filósofa mineira Sônia Viegas busca refletir sobre “A vereda trágica do Grande Sertão: Veredas” (Viegas, 2009). Curiosa essa presença da figura do demônio na tradição ocidental desde os fins da Idade Média. Trata-se de algo que se relaciona com a polêmica religiosa, não há dúvida, mas de forma ainda mais substantiva, como lembrou Pierre Francastel, “à descoberta que o homem faz de si mesmo”. Nessa obra de Guimarães Rosa, vislumbra-se essa atmosfera sombria nas marchas e contramarchas do jagunço Riobaldo em busca de seu lugar no mundo. É um “espírito estranhamente místico, oscilando entre Deus e o Diabo” (Proença, 1958, p. 6).

O sertão aparece na obra de Rosa como um espaço de indefinição, incerteza e carência. Um lugar marcado por surpresas e ameaças. Um terreno que é também perigoso, onde rege uma regra certeira: “Ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa…” (Rosa, 1980, p. 374). E ele toma conta de tudo e envolve as pessoas: “O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca” (Rosa, 1980, p.443). É um espaço marcado por lutas, sofrimentos e dores, como na passagem onde Riobaldo fala do triste espetáculo da epidemia da varíola e do perigo que ronda essa “grande doença”. Diante dele, e de tantos outros que povoam o sertão, acende-se a sede alternativa de um outro destino: “Eu queria poder sair depressa dali, para terras que não sei, aonde não houvesse sufocação em incerteza, terras que não fossem aqueles campos tristonhos” (Rosa, 1980, p. 297).

Naquele chão de inacabamento e ebulição nascem indistintamente, com igual formato de ramos e folhas, a mandioca mansa que dá vida e a mandioca brava que mata (Rosa, 1980, p. 11). Naquele campo das Gerais, junto com a sedução da terra a presença misteriosa do Demo, que convive intimamente com os jagunços e que, de certa forma, habita o seu interior, como bem expressa um provérbio sertanejo: “o diabo não existe, por isso ele é tão forte”. Já dizia igualmente Baudelaire que “la plus belle ruse du Diable est de nous persuader qu´il n´existe pas”. Ele está sempre aí, “na rua, no meio do redemoinho”. E sua figura vem apresentada com variados nomes: o Tal, o Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Duba, o Rapaz, o Tristonho, o Pai da Mentira, o Bode Preto, o Morcegão, o Xú, e assim por diante (Rosa, 1980, p. 33 e 317).

O sertão é um mundo do “fabuloso”, cosmos-caos, onde o ser humano pode “encontrar-se ou perder-se” (Viegas, 2009, p. 381). O inferno está sempre ali, à disposição, “é um sem-fim que nem não se pode ver”. Mas o jagunço quer um horizonte diferente, ele “quer Céu”, pois quer “um fim com depois dele a gente tudo vendo” (Rosa, 1980, p. 49). A vida desvela-se nas incertezas desse cotidiano ameaçado por todas as intempéries. O espetáculo mesmo da vida é “perigoso” e requer sempre vigilância. Mas há algo de bonito nisso: “As pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior” (Rosa, 1980, p. 21).

Há que lutar contra este vazio. E curiosamente, a condição absurda transforma-se em propícia oportunidade para o mais forte exercício da reação. O jagunço é alguém que pertence “a uma raça diferente”, pontuada pela coragem e tenacidade. Ele “vai ao encontro das intempéries humanas e naturais, com elas digladia de igual para igual” (Viegas, 209, p. 358). É uma luta em favor da “recondução das coisas a si próprias”. O sentimento de impotência não esvazia ou enfraquece a vontade de transformação, da busca de um sentido pelo qual vale a pena lutar. Há que ter coragem, repete Riobaldo diversas vezes em sua peregrinação. Como assinala, “o espirito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para a tristeza e morte vai não vendo o que é bonito e bom” (Rosa, 1980, p. 143). Mesmo sabendo que a vida é ingrata, o jagunço consegue vislumbrar um além, ele “transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero” (Rosa, 1980, p. 169). Reconhece que o caminho é “resvaloso”, que vai envolver quedas, mas nada que impeça a coragem de levantar e continuar no mutirão da vida, dando batalha. Assim é o correr da vida, ela “embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” (Rosa, 1980, p. 241).

Como jagunço experimentado, Riobaldo vigia com atenção, evitando o risco maior de ser selado pelo diabo. Para isso “carece de ter muita coragem”. Mas com Deus, tudo fica mais fácil, é o que se percebe em todas as falas do personagem. Com Deus “é menos grave se descuidar um pouquinho”, com ele, emerge um “encoberto poder”, ele é “alegria e coragem”, é “bondade adiante”. O medo ronda o sertão, não há dúvida, mas com Deus tudo se aquieta e suspende. O medo ameaça, e é um medo de todos, por isso “é preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência” (Rosa, 1980, p. 237). Não há no mundo popular a hipótese da ausência da religião, ela é a porta de entrada da consciência, ela “dá nome a todas as coisas e torna, até mesmo o incrível, possível e legítimo. Para os efeitos da vida, ela pretende envolver o repertório mais abrangente das questões e fazer as respostas mais essenciais (…)” (Brandão, 1980, p. 16-17). Daí a estupefação de Riobaldo diante da descrença de um doutor rapaz de Arassuaí, que afirmara que “Deus não há”. Isso é inimaginável para Riobaldo e todo o meio popular. Sua reação é imediata: “Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra” (Rosa, 1980, p. 48).

Há que beber da água de toda religião, “muita religião, seu moço!”. Como indica Riobaldo, é a “reza que sara da loucura”, daí não perder ocasião de religião, vivendo intensamente a presença de Deus, ainda que devagarinho. Na verdade, diz o jagunço, “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta” (Rosa, 1980, p. 170). Na luta entre Deus e o Diabo, o primeiro sai sempre vencendo, pois sua artimanha é inigualável, é o que ensina Riobaldo: “Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre” (Rosa, 1980, p. 21).

Na linda dedicatória de seu livro sobre o Grande Sertão: Veredas, endereçada às suas filhas, Sônia Viegas sublinha que “todo oceano é feito de esperança para o corpo que se faz navio”. No itinerário épico de Riobaldo Tatarana está implícito um convite que é para todos, o de conquistar um lugar no mundo, com firmeza e coragem. E também a esperança da presença de um “poder humano para além da fatalidade cega, das forças poderosas e arbitrárias” (Viegas, 2009, p. 358).

 

Faustino Teixeira
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.