A expressão “delírios de onipotência” foi bem aplicada na pena sábia e na voz profética de um pregador espiritual. Configura entendimento que possibilita melhor reconhecer de onde vêm os prejuízos amargados pela sociedade contemporânea, marcada por um ritmo insano e por um afã desmedido pelo lucro, alimentando apegos e sede de poder. Condutas fundamentadas em delírios de onipotência, responsáveis por tantos descompassos ambientais, sociais e políticos. É compromisso cidadão, que não é simples, contribuir para a identificação e superação das causas fatídicas desse colapso humanitário vivido na atualidade, inclusive no âmbito da saúde. Isso exige a desmontagem da intrincada engenharia que sustenta os delírios de onipotência. Mas a cultura contemporânea alimenta a ilusão da onipotência. Com sua dinâmica sedutora, essa ilusão tem força de dominação que configura mentes e corações, promovendo o obscurantismo, o autoritarismo e a eleição de relativismos como paradigma comportamental.
Superar os delírios de onipotência é condição inegociável e primordial para que a sociedade consiga ultrapassar o limiar de seu encarceramento autodestrutivo: dinâmicas que alimentam violências e perversidades em um mundo que tem tudo para ser justo e solidário. Desconstruir os delírios de onipotência muito contribuirá para vencer o adoecimento social, que alcança ápices nas pandemias, a exemplo da covid-19, mal que bate à porta de todos, igualmente. Delírio de onipotência é, pois, o nome sistêmico do processo de produção de diferentes enfermidades. E quando for superado o auge desta pandemia tão sacrificante, que exige o isolamento social, lamentavelmente a humanidade ainda não terá alcançado a imunidade de que necessita, radicada no reverso deste terrível mal: os delírios de onipotência.
A cura desse mal é um processo exigente e longo, com novas aprendizagens alicerçadas na interioridade. Um desafio para a humanidade acostumada com a espetacularização e o domínio das aparências, com a corrida desarvorada, o tempo todo, para se sobrepor aos outros, passando por cima de tudo e todos. Um processo que alimenta a ilusão de se achar “o dono” da palavra, das soluções. Reforça a pretensão humana de ter sempre razão, em tudo, sustentando o autoengano de se considerar mais importante que tudo e todos. Prevalece, assim, uma perspectiva narcísica, doentia. Mede-se o próprio valor pelo que se possui, pela capacidade de gastar dinheiro, pelo poder para dar ordens aos outros.
Percebe-se assim que as pandemias são apenas sintomas que causam medo. As doenças são enraizadas nos delírios de onipotência. Compreende-se, pois, que a esperança da superação da avassaladora pandemia da covid-19, que parou o mundo, e de tantas outras, depende de novos hábitos e práticas organizacionais, com a indispensável consideração da vida como dom precioso. Obviamente, a referência não é somente à própria vida, mas o bem maior de todos. Novas lógicas devem inspirar o mundo do trabalho, qualificar a convivência e promover uma espiritualidade que resgate o ser humano da pequenez – manifesta nas indiferenças em relação ao outro, que é irmão, nos partidarismos que levam a escolhas equivocadas e medíocres, no formalismo asséptico que contamina processos educativos, na cultura sem força para sustentar valores fundamentais à vida.
A condição cidadã desgastada se projeta nos delírios de onipotência, traduzidos de muitos modos nefastos, a exemplo da indiferença paralisante sobre a situação dos que mais sofrem. Essa indiferença é a que não deixa pessoas se envergonharem, mesmo convivendo com triste situação: enquanto poucos navegam em mar de dinheiro a grande maioria vive na miséria e precisa lutar, todos os dias, para sobreviver. Não menos grave é o gosto pelo autoritarismo, um produto sofisticado e perverso dos delírios de onipotência, dando espaço a psicopatias na política, na prática religiosa e nas relações interpessoais.
Os atentados contra a democracia, valor intocável para se conquistar equilíbrio em uma humanidade plural, são graves sinais de delírios de onipotência. Combater esses delírios, vírus mortais, exige humildade – valor espiritual determinante, mas ainda distante das virtudes do ser humano. Esse valor, para ser alcançado, pede nova aprendizagem: a espiritualidade. Um novo caminho, desafiador até para religiosos – mas é preciso trilhá-lo para superar as pandemias geradas e alimentadas por delírios de onipotência.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).