As festas na passagem de ano se engalanam para, certamente, encobrir a realidade. O íntimo de cada indivíduo, os cenários econômicos, políticos e religiosos mostram aspectos muito diferentes do que se presencia nas comemorações espetaculares. Por isso mesmo, exigem adequado tratamento. Obviamente, a euforia da contagem regressiva, ao se finalizar um ano civil e começar um novo ano, justifica-se pelo nutrimento de esperanças traduzidas com os augúrios de todo tipo. Além de ser uma propriedade do coração humano, esperar um novo tempo se põe como exigência e premente necessidade, especialmente quando se considera os descalabros e descompassos civilizatórios, como o crescimento da miséria, a condição cruel dos refugiados, a prática irresponsável de extermínios de indígenas, moradores de rua, mulheres. Passadas as comemorações, é preciso buscar profundas mudanças que permitam superar esses pesos que recaem, especialmente, sobre os mais pobres e indefesos.

Impressiona o quanto se gasta com fogos de artifício, incalculável é o consumo de comida – para além da necessidade – e de álcool. As festas na passagem de ano estão distantes da realidade de diferentes cenários sociais. Muitos parecem buscar a alegria não na expectativa de um tempo novo, mas no espetáculo que reúne fogos, comida e bebida. Enxerga-se na festa, equivocadamente, a possibilidade de fazer surgir a novidade esperada, o futuro que se quer. Essa reflexão não é juízo moralista – descabido e inassimilável nas celebrações festivas da passagem do ano. Trata-se de indicação que pode ajudar a perceber que, além das festas, é preciso avançar na busca pelos caminhos capazes de levar a nova etapa civilizatória.

Ora, sempre haverá festas, que são também importantes contribuições para compor o tecido da cidadania, constituir a dimensão interior que sustenta condutas e inspira sentimentos de solidariedade a partir de um encantamento pela vida, que não se pode perder, pois levaria a uma falta de graça suicida. A baixa estima pela vida corrói interioridades, inviabiliza percepções para se viver qualificadamente, prejudica o cumprimento de obrigações e posturas que podem contribuir para avanços sociais, econômicos e políticos. O aspecto fantástico das luzes e cores, mesmo sendo um fenômeno efêmero, é beleza que marca o caminho inaugurado pela contagem de uma nova série de dias vindouros, mas também pode esconder uma essencialidade interior que, se for desconsiderada, leva a situações desastrosas.

O ingrediente perigoso e ilusório que esconde e, ao mesmo tempo, indica haver uma baixa estima pela vida é revelado nas festas que substituem o encontro familiar, a troca da solidariedade, pela ostentação de roupas e maquiagens, na simples busca pela aceitação dos outros em vez de se cultivar laços verdadeiros de amizade, no comer e beber exageradamente enquanto se conversa sobre veleidades. A sociedade contemporânea – descompassada social e politicamente, mesmo cultural e religiosamente, encobre e, ao mesmo tempo, é vetor de baixas estimas, que levam a revoltas, ao desrespeito a princípios éticos e ao fomento de todo tipo de violência. Abre-se mão da simplicidade, da sobriedade e do equilíbrio, remédios que curam indiferenças, dissabores e a falta de gosto pelo altruísmo e pela vida.

Em oposição às ilusões, a espiritualidade proporciona uma qualificação interior para que se tenha coragem de voltar à realidade, sempre, de novo, a cada dia, e, ao reconhecê-la, humanizá-la. Assim, contribuir na superação dos descompassos e manipulações que continuam a dizimar a humanidade. Quando o ser humano alicerça-se somente na razão, não consegue avançar na direção de um mundo melhor. Fracassa, ou até joga lama sobre o que já conquistou, por falta de qualificado humanismo que formata hábitos, práticas e posturas cidadãs. O resultado é sempre a vida ameaçada, como revelam tantos acontecimentos recentes, já vividos neste novo ano.

A volta à realidade é exercício cotidiano para a confecção de um novo tecido civilizatório, na contramão de prepotências de chefes de Estado, de escolhas criminosas em instâncias ou instituições. É considerar a necessidade urgente de se desmontar esquemas estruturais e conjunturais, também individuais, dos muitos que não querem renunciar a seus privilégios e, consequentemente, passam por cima da dignidade humana e do bem comum. Desafio e exigência, voltar à realidade, sem medo de sua crueza e a partir do sonho de transformá-la, é passo decisivo para um novo humanismo, integral: cultivando uma vida simples, a coragem sábia para enfrentar adversidades com alegria, promovendo o bem, a justiça e a paz.

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).