Não posso rezar todos os dias,
a igreja abre às sete a fábrica ás seis.
Então, Senhor, perdoai-me,
mas primeiro o patrão, dele vem o pão.
Vejo outros companheiros amigos,
de dentro de seus olhos vêm gritos
e carregam no interior
de suas almas sofrimento,
há muito não sabem o que é um alento,
pois não aprenderam que mais que manejar,
é preciso entender as ferramentas.
O dia começa infiel,
somos prisioneiros da angústia,
somos multidão profundamente
silenciosa ao acaso,
somos homens torpemente sós.
Os muros das fábricas são altos.
marrons,
ali dentro as máquinas nos cortam,
nos moldam.
Ali dentro esvaziam nossos corações
e nossos cabelos ficam cheios de limalha de ferro.
Somos visitas nos quintos dos infernos.
Quando no banheiro aparece um recado,
um chamado,
nossos corações batem mais forte,
o ar fica pesado, as máquinas ficam tensas,
absurdas,
mas mesmo assim moldam as peças,
deformam o homem.
Um companheiro riu da vida.
Displicente riu da vida,
e a guilhotina arrancou-lhe as duas mãos
e se tivesse outras duas,
ou quantas mãos fossem preciso,
continuaríamos passivos no perfil da produção.
Nunca me esquecerei:
riu da vida, e chorou as peças de vermelho.
Teve um dia que vieram muitos
gringos e o doutor, barrigudos, bonachões,
unhas feitas e cabelo com brilhantina,
falaram enrolado e riram um riso sem sal…
depois reclamaram de uns parafusos
jogados num canto.
Não falaram nada sobre os restos de homens
meio-máquinas… quem nos dera ter um plano.
Amo minha fresa,
converso com ela
faço-lhe carinho
e ela me obedece.
Todo dia alimento-a
e ela faz as mesmas engrenagens,
iguais. Cega obediência:
fruto do nosso amor
sem variações.
À tardinha sinto ciúmes
pois sei que à noite
ela pertence a outro homem,
sinto ciúmes, pois sei
que ela faz para ele
como faz comigo.
Conheço seu pulsar,
seu cheiro, seu hálito
é parte de mim,
e sofro quando outro a possuí,
sofro e tenho medo
do que estou me transformando…
Amo a fresa do patrão
como amo a minha mulher.
Mandaram quinze embora,
quinze bocas vezes quatro,
quantas bocas dependendo desses braços.
É um terror na cessão, os sussurros
e o guinchar das máquinas se misturam
com notícias e boatos,
pois esquecemos que é proibido comentários,
e nos olhamos desconfiados,
uns com pena dos outros, temendo por si próprios,
e dança em cada rosto as rugas e o pavor
de quem é lentamente condenado.
Não há trato com patrão
ele vem de vai da valsa,
nós somos samba canção,
não adianta remédio
pra ilusão que já morreu,
ele leva o que é dele
e mete a mão no que é meu.
Patrão nunca foi bobo,
nunca perdeu em negócio
se ele dá dois, leva seis
do povo nunca foi sócio.
Ele tem a farinha
e dá o gosto do pirão
dele só vem ladainha
pra no fim dizer que não.
Não há riso pra patrão
que fique isso bem claro
ele que preste atenção
cansamos de ser otários.
As coisas se transformam na fábrica,
como a alma.
Chegam às minhas mãos pedaços, peças,
que vão adiante sem que eu saiba o que é.
Sobre essas partes cai meu suor
e meus olhos atentos vigiam as minhas dúvidas
…e em silêncio sinto
que o homem, somente o homem
se transforma na fábrica, na consciência diante
do movimento. Do tempo. Do produto.
Às vezes penso que sonhamos
que é preciso atingir o coração da máquina,
desatar o cordão umbilical
e buscar a vida – para entender a vida -,
homens que somosna obscura nitidez
da contradição de tudo.
A necessidade de sobreviver
é tão forte, que se existe dúvida
é por conveniência, não por covardia.
Arrebentar a linha de produção,
seria como arrebentar grilhões. Sabemos.
O coração da fábrica pulsa
com os meus braços, com a minha força.
Não posso alimentar
o instrumento da minha destruição.
Quando a sirene soa e os portões se abrem,
vêm-nos um alívio…
o ar sombrio dos movimentos compassados
dá lugar a novos motivos.
Mas no fundo, no fundo da alma
estamos divididos e inúteis,
somos pássaros engaiolados
na liberdade das cinco da tarde.
O deus patrão repousa sobre os lucros
e o deus do céu ameniza nossas ambições.